Educação infantil e diversidade
Educação infantil e a construção de uma educa-
ção antirracista: desafios e proposições
Lucimar Rosa Dias 1
1 Mestre em Educação pela UFMS. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação da USP.
Consultora do CEERT.
1. Quem Deve Ensinar, o Que
Deve Ser Ensinado e onde
Ensinar?
Pesquisas cada vez mais avançadas nas á-
reas médicas, educacionais e também da
psicologia indicam que a fase inicial da vida
de um ser humano tem muita importância.
Desde a concepção até os seis anos, as coisas que vivemos, sentimos, expressamos e
aprendemos podem produzir marcas que
ficarão presentes ao longo de nossas vidas,
nos ajudando a viver melhor ou impedindo
que isso aconteça. Além disso, é uma fase na
qual se aprende rapidamente e em grande
quantidade.
Estas descobertas “criaram” fazeres educativos nos quais está presente a certeza de que
a criança pequena é uma pessoa ativa, que
constrói suas próprias opiniões, que sabe
manifestar seus sentimentos, suas dúvidas,
seus desejos, sonhos e fantasias. Estamos
cada vez mais preocupados em organizar lugares nos quais a criança possa de fato constituir-se como sujeito atuante, participativo
e crítico. Acreditamos que as crianças que
tenham acesso a esse tipo de ambiente crescerão de um modo melhor, com chances de
serem respeitadoras das diferenças entre as
pessoas, mais educadas, criativas, honestas,
preocupadas com a coletividade, com maior
capacidade de resolver os problemas sociais,
políticos e econômicos, enfim, uma criança
que viva sua infância de modo seguro e que
cresça sendo cidadã, ciente de seus direitos
e deveres.
Toda essa expectativa gerada pelo conhecimento sobre o desenvolvimento do ser humano passou a influenciar as ações desenvolvidas por quem educa e trouxe a certeza
de que essa educação não é para criar o cidadão do futuro, mas sim do presente. Quando
pensamos na atual sociedade, as expectativas aqui levantadas parecem meras utopias,
e o são, mas no sentido que Paulo Freire dá
ao termo, isto é, em Paulo Freire, a realidade 18
projetada (utopia) funciona como um dínamo de seu pensamento, agindo diretamente
sobre a práxis. Portanto, não há nele uma
teoria separada da prática. Estamos buscando, na ação e na reflexão, transformar
a nossa realidade para algo melhor e assim
buscamos a nossa utopia de um mundo melhor fazendo-a acontecer a cada dia.
A vida está repleta de momentos em que
educamos e em todos eles é possível perceber a tentativa de aplicação de um modo
educativo que esteja em consonância com
essas descobertas. Os pais, independentemente da classe social em que se situam,
tentam dialogar mais com seus filhos, nos
lugares que desenvolvem a educação informal, isto é, sempre há tentativas de ser
mais atrativo, explicar mais o que se quer,
trabalhar mais com a sedução do que com a
obrigação. Um exemplo disso é o que ocorre nos grupos religiosos, que cada vez mais
têm trabalhos voltados especificamente
para as crianças pequenas usando linguagem apropriada – desenhos, histórias e até
brinquedos – para informar suas crenças.
Essas mudanças nos modos de educar são
perceptíveis também na educação formal,
ainda que haja a aceitação, por parte de
alguns educadores, da premissa de que a
escola não consegue mais “competir” com
os meios contemporâneos de transmissão
de informações, de valores e de atitudes:
revistas, jornais, internet (para algumas) e
principalmente pela televisão. Ao mesmo
tempo, convive-se com outra premissa, a de
que muitas coisas que antes se aprendiam
no espaço doméstico, hoje se aprendem
na escola. Estas situações parecem contraditórias e, por isso, produzem nos educadores uma sensação de barco à deriva. Na
realidade, uma situação não exclui a outra,
convive-se cada vez mais com informações
que chegam à escola por meio de diferentes
recursos, todavia, o papel do educador, que
é ensinar, continua de pé.
Atualmente, a função do educador, mais
que transmitir informações, é transmitir
conhecimento, ou seja, junto com seus alunos proceder à “leitura de mundo”, refletir,
filtrar os conteúdos é de suma importância. Os alunos recorrem ao educador para
compreender, discutir e comentar as informações adquiridas, transformando-as em
conhecimento.
É claro que não excluímos a possibilidade de
que as crianças também tragam para seus
professores conhecimentos, mas isso acontece desde antes de a televisão e de a internet adentrarem ao espaço da escola. Desde
sempre, temos alunos que investigam, são
curiosos, elaboram questões e nos propõem
pensar juntos, construindo um fazer pedagógico colaborativo e solidário. Se acontece
assim quando tratamos da educação em geral, imaginem a dimensão desses questionamentos quando nos referimos à educação 19
infantil, período de vida em que o sujeito
está aprendendo quase tudo: seu nome,
falar, andar, diferenciar letras de números,
palavras de desenhos, questiona-se sobre
quase tudo: Por que chove? Por que sou
menino? Por que sou menina? De onde vêm
os bebês? Onde vivem as formigas? São
tantas as questões e tão inusitadas que os
educadores se veem muitas vezes atônitos,
no entanto, quando
conseguem concretizar o seu currículo
a partir das questões
apresentadas pelas
crianças, percebem
que a riqueza e o
grau de aprendizagem vão muito além
do que a formalidade dos currículos
previstos.
Nesse universo de questões inclui-se o tema
do respeito às diferenças raciais. As crian-
ças se perguntam: Por que temos cores diferentes? Por que sou branca e ele é negro?
Por que meu cabelo é crespo e o dele é liso?
Durante esses questionamentos, um educador atento percebe as manifestações de
rejeição às diferenças e tem por obrigação
pedagógica trabalhar com elas, construindo com as crianças o princípio de que as
diferenças entre os seres humanos são um
valor e não devem ser utilizadas para inferiorizar as pessoas. Como sabemos, nesse
processo de descoberta, questionamento
e manifestações, as crianças negras estão
em desvantagem; criadas numa sociedade
racista e discriminadora, as crianças brancas, desde muito cedo, percebem-se portadoras dos bens simbólicos e materiais que a
branquitude lhes dá neste país. E as crian-
ças negras também percebem que o fato de
serem negras lhes traz desvantagens. Com
isso, estabelece-se
sempre uma rela-
ção desigual entre
as crianças, quase
sempre conflituosa
e, infelizmente, não
são todos os educadores que percebem que esse é um
tema do universo
infantil que precisa
ser contemplado na organização dos conteúdos a serem trabalhados ao longo do
ano. Por isso, foi necessário instituir a Lei
n. 10.639/03, que obriga as escolas públicas
e privadas a incluir no currículo a história e
cultura afro-brasileira e africana.
Já existem muitas experiências de inclusão
no currículo desse tema. Ele tem recebido
diferentes denominações: respeito às diferenças raciais, tolerância, trabalho com a
diversidade, diversidade étnico-racial, pluralidade cultural, promoção da igualdade
racial etc. Sem aprofundarmos na questão
da denominação, que é importante, mas
As crianças se perguntam:
Por que temos cores
diferentes? Por que sou
branca e ele é negro? Por
que meu cabelo é crespo e
o dele é liso? 20
não será foco de nossa reflexão, o fundamental é sabermos que a escola está sendo
chamada a incluir no seu currículo um trabalho pedagógico com o tema da educação
das relações étnico-raciais, seja por meio da
legislação, como é o caso do cumprimento
da Lei n. 10.639/03, seja porque nossa realidade indica que desde muito cedo os educandos precisam aprender a conviver com
o outro, respeitando-o em seu jeito de ser
física e psicologicamente, respeitando o seu
modo de estar no mundo com suas crenças,
desejos e ideias e com seu modo de fazer,
isto é, sua cultura, seu jeito de produzir e
reproduzir a vida.
Tal respeito, obviamente, não significa passividade diante do outro, ausência de conflitos e discussões sobre pontos de vistas.
Não estamos advogando que respeitar significa deixar que o outro faça o que quiser, do
jeito que quiser. O respeito é sempre a negociação entre os diferentes modos de ser,
estar e fazer. Isso inclui a possibilidade de
pensar juntos e também de tentar convencer o outro sobre determinadas coisas, mas,
sobretudo, implica não querer exterminar
o outro, nem odiá-lo. Ignorar a sua origem,
impedir que conheça a produção dos seus
antecedentes, ou dificultar que os sujeitos
gostem de si mesmos, a exemplo do que tem
sido feito com as crianças negras brasileiras.
Precisamos incluir como papel fundamental da escola problematizar o racismo, que
mata o que de mais belo os sujeitos têm,
qual seja, a capacidade de amar o outro com
suas singularidades. Isto é, aprender a viver
e a conviver com quem é diferente de mim.
Ensinar isso é tarefa que cabe aos familiares,
mas também aos educadores, principalmente, educadores de crianças pequenas.
2. oENSiNo-APrENDizAGEm
SobrE o rESPEiTo àS
DifErENÇAS rAciAiS NA
EDucAÇÃo iNfANTiL
No Brasil, a Educação Infantil, desde 1996
(LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação
– n. 9.394/96), passou a ser um direito da
criança, independentemente de sua condi-
ção social. Todos os meninos e meninas de
0 a 6 anos devem ter garantido o seu direito
ao acesso à educação básica.
Vitórias assim, mesmo que ainda longe de
serem concretizadas, surgem a partir das
constatações de que os seres humanos precisam de amparo, principalmente no come-
ço de suas vidas, pois é nele que se originam
as bases da aprendizagem, sobre os valores,
atitudes e também sobre a sua identidade e
a identidade do outro. Quem sou eu? Quem
é ele/ela? Por que ele/ela é diferente de mim?
Como a construção da identidade é sempre uma relação com o outro, as crianças
fazem perguntas sobre as diferenças entre
as pessoas e constroem suas percepções de
superioridade, inferioridade, igualdade e desigualdade.21
Meninos e meninas dessa faixa etária, como
já dissemos, devem ser considerados sujeitos de direitos e portadores da capacidade
humana de pensar sobre a vida nos mais
diferentes aspectos. Eles fazem perguntas
sobre si mesmos, sobre a natureza, sobre a
vida, e também formulam respostas sobre
esses mesmos temas a partir do que veem,
ouvem e sentem ao
seu redor.
É a partir da concep-
ção de criança capaz
de refletir sobre o seu
dia a dia, de questionar e problematizar
as diferentes informações recebidas pelos diversos meios a
que têm acesso que
tratarei o tema da
educação infantil: desafios e proposições
para a construção de espaços educativos de
respeito às diferenças raciais e do processo
de construção de uma educação antirracista
na educação infantil.
É certo que a vida nas cidades leva as crian-
ças a entrarem cada vez mais cedo para
as escolas. Por diferentes motivos, alguns
porque os familiares precisam trabalhar,
ou porque os pais sentem a necessidade de
procurar companheiros para os filhos, ou
por outros motivos. O fato é que as crian-
ças chegam hoje às escolas com 06 meses de
vida e passam de 4 a 6 horas nesses espaços
educativos.
Em alguns casos, é a educadora que ouve a
primeira palavra dita pela criança, vê o primeiro passo, ajuda a tirar a fralda, ensina a
comer, e até conhece melhor os amigos da
criança do que os próprios pais, porque é ela
quem passa com
ela longas horas.
Sendo assim, as
educadoras terão
uma função importante na constitui-
ção da identidade
dessas crianças.
Pois é também nessa faixa etária que
a criança se pergunta e pergunta
aos outros sobre as
diferenças sexuais, de classe e de cor/raça.
Uma educadora, para ser considerada comprometida com uma educação séria, de qualidade, democrática e antirracista, tem que
estar atenta ao processo de construção da
identidade das crianças. É na interação social, entre as crianças e seus pares e entre
as crianças e os adultos, que esse processo
vai sendo construído. Na escola, ele é mediado pela educadora que tem a responsabilidade de proporcionar momentos nos quais
as referências positivas relativas a todos os
grupos humanos estejam presentes, possibiUma educadora, para ser
considerada comprometida
com uma educação séria,
de qualidade, democrática
e antirracista, tem que
estar atenta ao processo de
construção da identidade
das crianças.22
litando que as crianças aprendam a importância da diversidade.
Não podemos considerar que uma educadora seja comprometida quando silencia diante do sofrimento de uma criança que não é
aceita pelo grupo por algum tipo de marca,
por ser negra, ou gorda, ou usar óculos ou
por outro motivo qualquer. Temos visto, por
meio de várias pesquisas, que entre as muitas marcas que são objetos de discrimina-
ção e preconceito, portanto de dor, a mais
forte e marcante é de ser negra, ter cabelos
crespos. Crianças da mais tenra idade, devido às suas heranças de origem racial (cor e
cabelo), são expostas à convivência hostil e
à ironia de colegas e, em muitos casos, dos
próprios educadores (o que é mais grave).
Isso de fato se constitui em crime contra
as crianças negras, pois sabemos que, para
desenvolver-se de modo positivo, a criança
depende de um suporte psicossocial. Isso
significa, entre outras coisas, trazer para escola conteúdos que foram por muito tempo negados como pedagógicos, tais como o
conhecimento da cultura de outros povos
que não os europeus. A história dos negros
brasileiros e do continente africano, assim
como a dos indígenas, em geral são desvalorizadas. Podemos e devemos diversificar
as referências de nossas crianças sobre as
populações existentes. Elas precisam saber
que os povos negros e indígenas possuem
uma história de luta e resistência, possuem
cultura, criam histórias, músicas, etc. Isto
vai possibilitar que as crianças aprendam
sobre si mesmas, pois falar dos povos africanos e compreender a história de todos os
brasileiros são atitudes que também contribuem para a construção de novos olhares
desses grupos para si mesmos e de outros
grupos para com eles.
Reivindicamos que é necessário abordar na
educação infantil aspectos que tratem das
relações raciais porque as marcas raciais -
cor, cabelo, aspectos culturais - são elementos presentes no cotidiano das crianças nesta faixa etária, suscitando-lhes curiosidades
e conflitos que não podem ser desconsiderados. Muitas vezes, a educadora percebe
prontamente esses conflitos e curiosidades,
e age sobre eles. Outras vezes, cala-se por
medo de tocar num assunto que a sociedade
brasileira quis esconder, sentindo-se despreparada para abordá-lo.
O silêncio, nesse caso, é mais que uma omissão, é um crime contra a humanidade. Calar-se é negar sua contribuição para que as
crianças sejam capazes de compreender o
mundo que as cerca e dar-lhes referenciais
para que não sejam racistas, preconceituosos, sexistas. É preciso oportunizar-lhes outros modos de ver as pessoas que as cercam,
possibilitando-lhes questionar as informa-
ções que recebem nos diferentes ambientes
em que convivem.
Os marcos legais para trabalharmos questões relativas à construção da identidade, 23
de modo que consideremos os aspectos raciais como importantes, já existem desde
1998, quando foram lançados os Referenciais Curriculares da Educação Infantil. Este
documento recomenda que:
O desenvolvimento da identidade e da
autonomia estão intimamente relacionados com os processos de socialização.
Nas interações sociais se dá a ampliação
dos laços afetivos que as crianças podem estabelecer com as outras crianças
e com os adultos, contribuindo para que
o reconhecimento do outro e a constatação das diferenças entre as pessoas
sejam valorizados e aproveitados para o
enriquecimento de si próprias.
Atualmente, temos as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana - DEER, advindas
da Lei n. 10.639/03, que legitimam os trabalhos que abordam este tema em qualquer
etapa da educação básica. Apesar desses
marcos, sabemos que a inclusão, na prática
da educadora, de ações voltadas para esse
aspecto virá da certeza dela de que elas são
importantes. O convencimento das educadoras de que essa é uma questão pertinente,
que faz parte do seu dia a dia e que precisa
ser pedagogicamente abordada, fará com
que esses marcos legais criem vida e garantam às nossas crianças de todas as origens
étnico-raciais uma educação que promova a
convivência entre os pares, desconstruindo
a percepção da desigualdade. Muitas experiências por todo o Brasil já estão sendo realizadas e pretendemos colaborar para que
inúmeras outras sejam concretizadas.
3. A PErcEPÇÃo DA iGuALDADE
NADifErENÇA
Sabemos que a educação, enquanto processo, não pode eliminar as desigualdades que
têm por base estrutural a economia, mas temos certeza de que ela pode colaborar na
construção do que chamamos de percepção
da igualdade entre os seres humanos. Como
disse Paulo Freire: “Se a educação sozinha
não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.” Vivemos numa
sociedade que construiu a idéia de igualdade
formal “todos são iguais perante a lei”, sem
muitas preocupações com a concretização
dessa igualdade. Por isso, é possível conviver
com essa idéia e, ao mesmo tempo, na vida
cotidiana, ver pessoas serem inferiorizadas
pelas marcas que trazem em seu corpo ou
no modo como vivem e não nos incomodarmos muito, afinal, “todos são iguais perante
a lei”.
Por isso, cremos que seja papel fundamental da educação como um todo e da educa-
ção infantil em particular possibilitar que
as crianças compreendam e percebam que
o ambiente escolar é igualitário na sua concretude, exatamente, porque respeita e dis-24
cute as diferenças. Para isso, não adiantará
muito as educadoras usarem algumas frases
de efeito muito comuns no meio educacional: “para mim as crianças são iguais”, “eu
trato todos do mesmo jeito”, “aqui na sala
não tem diferença de cor” ou “eu nem percebo a cor dos meus alunos”, “eu não presto atenção se tem preto ou branco na sala”.
Todas essas falas estão imbuídas do princí-
pio da democracia,
mas no sentido em
que Maclaren (2002)
critica. Segundo ele,
“Uma das perversões
sub-reptícias da democracia tem sido
a maneira pela qual
os cidadãos têm sido
convidados a se esvaziarem de toda a sua
identidade racial e étnica, de forma que,
aparentemente, eles se apresentam nus
diante da lei” (2000, p. 42).
A atitude expressa nessas frases está longe de
ser a da educadora comprometida com uma
educação igualitária, pelo contrário, quando
não “vemos” as diferenças raciais presentes nas salas de aulas da educação infantil,
estamos colaborando para que as crianças
que passam por nós mantenham as ideias
de percepção da desigualdade de modo forte e inabalado. O velho ditado “quem cala
consente” é muito verdadeiro neste caso.
Calarmos diante das questões que as rela-
ções raciais suscitam entre as crianças é
colaborar para que as crianças negras cres-
çam tímidas, temerosas, envergonhadas de
si mesmas, e sintam que a escola não é uma
ambiente que as acolhe, já que nega sua história e cultura e não as protege da violência
da discriminação e do preconceito raciais. E
colabora também para que as crianças brancas cresçam acreditando na superioridade
que a brancura lhes dá, sentindo-se bonitas,
inteligentes, seguras.
Cabe às educadoras
fazerem a sua parte
no que diz respeito a
desconstruir a ideia
de que um grupo de
pessoas é melhor que
outro. É preciso desconstruir essa percepção de desigualdade legitimada, assegurada, permitida, camuflada
na ideia abstrata de igualdade. Precisamos
estabelecer percepções de igualdade, e isso
só ocorrerá se provocarmos uma ruptura no
que está estabelecido.
3.1. como fAzEr?
Uma criança, desde bebê, na convivência,
percebe quem é mais bem aceito pelos
adultos. Não é difícil para elas reconhecerem quem recebe mais carinho, mais beijos,
mais abraços. Elas observam quais fotos são
mais expostas, se os lugares destinados a
determinada criança são ou não privilegiados. Todas as crianças – brancas, negras ou
Uma criança, desde bebê,
na convivência, percebe
quem é mais bem aceito
pelos adultos.25
indígenas – são capazes de perceber a desigualdade instalada nos ambientes, quando
essa existir. Mesmo que ainda não consigam
verbalizar isso, elas percebem. Por vezes, há
educadoras que sustentam essa desigualdade sem nela atentar. Nas instituições de
educação infantil há sempre imagens de bebês, fotos, gente disposta a pegar no colo e
dar carinho. Será que todas as crianças, de
todos os grupos raciais, são objetos desses
carinhos? Às vezes, as educadoras repetem
formas interativas preconceituosas e discriminatórias, noutros casos percebem o racismo nessas relações, mas se calam.
Tanto o silenciamento quanto o desconhecimento tornam-se procedimentos desumanizadores, porque reproduzem e mantêm
situações dolorosas vividas por pessoazinhas
tão pequenas. Recorro a um exemplo, que
me foi relatado por uma professora, para
demonstrar como ocorrem situações de rejeição/aceitação presentes o tempo inteiro
nas salas de aula da educação infantil e nem
sempre a professora está atenta.
Embora seja educação infantil a gente
acha que não existe preconceito, mas
existe. Não que a criança em si seja
preconceituosa, ela... ela... ela reproduz as atitudes dos adultos... Então,
era assim, às vezes na hora da roda,
“ciranda, cirandinha”, “atirei o pau
no gato”, tinha criança branca que
não aceitava pegar na mão de crian-
ça negra. Isso com 1[ano], 2 [anos] lá
no berçário, você não sabe o porquê.
parece que as criança negras ou escurinhas sentem dificuldades de ser aceitas. Como também tem criança que
se apega demais a outra. Uma crian-
ça negra, por exemplo, você vê muito assim, uma criança negra se apega muito à criança de pele clara, eu
acho, não sei se é porque chama muito
a atenção dela, então, tinha criança
que não aceitava...
As educadoras têm diante dessa realidade
uma função importante que é proporcionar
às crianças o que estou chamando de percepção da igualdade, isto é, a partir das atividades realizadas no seu fazer pedagógico, a
educadora possibilitará que as crianças percebam que não há cor de pele bonita, não
há apenas um tipo de cabelo que é “bom”.
Todos os cabelos têm sua beleza, vantagens
e desvantagens. Enfim, o ambiente escolar
deve fornecer informações explícitas e implícitas que todos os tipos raciais têm valor.
Vale a pena destacar algumas características
das crianças nessa faixa etária e, por conseguinte apontar alguns caminhos metodológicos para o trabalho com as diferenças
raciais na educação infantil.26
4. ProPoSiÇõES PArA A
coNSTruÇÃo DE ESPAÇoS
EDucATivoSQuE PromovAm A
PErcEPÇÃo DE iGuALDADE NA
DifErENÇA
4.1. Por oNDE ir? “o cAmiNho
SE fAz Ao cAmiNhAr”
Devemos ficar bem atentas para que o trabalho com essa temática parta de questões
que motivem as crianças e, sempre que possível, ele seja incluído em temas já consolidados no currículo da educação infantil. Ao
apresentar dicas de como incluir esse trabalho no cotidiano da escola, implica esclarecer que a construção da percepção da igualdade racial necessita do compromisso das
educadoras em assumir o princípio de que
a diferença é um valor. Isso quer dizer que é
necessário construir metodologias, atividades, material didático para proporcionar o
entendimento desse princípio. Mais do que
debater com nossos pequenos a impertinência do racismo, devemos construir com eles
ideias positivas sobre os diferentes povos. A
partida para uma educação antirracista na
educação infantil não é o discurso moralizante de “como é feio ser racista ou preconceituoso” ou de como “não devemos discriminar o amiguinho, pois todos são filhos de
Deus”. Essas falas são muito comuns entre
as educadoras desejosas de ensinar uma
postura mais adequada aos seus alunos em
situações conflitantes. São bem intencionadas, porém, produzem pouco efeito na construção da percepção de igualdade.
Essa percepção deve fundamentar-se no
princípio de que as pessoas são portadoras
dos mesmos direitos de serem amadas, cuidadas, ensinadas, respeitadas e educadas.
Podemos partir de trabalhos organizados
em projetos com objetivos pedagógicos, os
quais tragam informações positivas sobre o
povo negro e indígena, preferencialmente,
ou sobre qualquer outro grupo que possa
ser estudado.
Não sabemos todas as estratégias de como
abordar os temas relativos aos modos de
combater o racismo em sala de aula e obter resultados positivos. O tema não é novo,
mas a busca por sua instituição na escola é,
e por isso há muitas dúvidas e incertezas,
porém, não existe outra forma de descobrir
as melhores estratégias, sem ser o exercício
do fazer pedagógico, ato que implica açãoreflexão-ação. Nosso grande mestre Paulo
Freire disse “no momento, porém, em que
se comece a autêntica luta para criar a situação que nascerá da superação da velha, já
se está lutando pelo ser mais”(1987, p. 34). É
nesse sentido freiriano que na própria ação
da educadora vai se desenhando o melhor
caminho a ser seguido.
Apresentaremos algumas sugestões baseadas nos conteúdos previstos nos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação 27
Infantil, na nossa experiência como educadora antirracista e na experiência de outras
professoras que foram conosco compartilhadas nessas muitas andanças que temos
feito pelo Brasil. Entretanto, longe de ser
um modelo estático a ser seguido, são possibilidades que devem ser apropriadas pelas
educadoras e ressignificadas, considerando
a idade de suas crianças, o grau de reflexão,
as condições objetivas que os gestores proporcionam, e é claro, o acúmulo que cada
educadora vai adquirindo ao longo do fazer.
Essa tarefa pode ser no início árdua, mas
à medida que as educadoras a exercitam,
elas compreendem a grandeza nela contida
e vão-se realizando ações que concretizam
os princípios apresentados. Dessa forma,
transformam-se em atividades prazerosas e
alentadoras, fazendo de cada educador antirracista um cidadão ético e feliz, por cumprir com seu dever de educar.
4.2. o bANho, A TrocADE
frALDAS, o SoNo – oS cuiDADoS
Do corPo QuE vÃo ALÉm...
Nos momentos de banho, da troca de fraldas, quando se põe para dormir, há uma
intensa troca de toques, por isso esses momentos são especiais para as crianças. Neles
elas percebem se estão sendo tocadas com
carinho, raiva ou indiferença. Elas também
vão percebendo quem é a criança preferida
e por que, e de que modo ela é convidada a
se alimentar.
Na relação estabelecida, por exemplo,
no momento de tomar a mamadeira,
seja com a mãe ou com o professor de
educação infantil, o binômio dar e receber possibilita às crianças aprenderem
sobre si mesmas e estabelecerem uma
confiança básica no outro e em suas pró-
prias competências (p.17, v. 2).
Esse processo vai construindo a autoconfiança da criança e dando-lhe informações
corporais, visuais e de oralidade sobre ela e
sobre os outros. É importante, portanto, que
a educadora observe seu modo de atuar nesses momentos e que reflita sobre quem escolhe primeiro para receber esses cuidados.
É sempre a mesma criança? Por qual motivo? Como olha para cada uma das crian-
ças quando as está alimentando ou dando
banho? Como as chama? Dá-lhes apelidos?
Quais? Por quê? Como toca seus cabelos?
Penteia-os? O que lhes diz?
Essas interações dão às crianças referências
positivas ou negativas sobre si mesmas, sobre seu jeito de ser, sobre seus cabelos, a
cor de sua pele, seus olhos. As educadoras,
nessa interação, estarão mediando as interpretações entre o que os pares (as outras
crianças) pensam e o que cada criança pensa de si mesma. No volume 2 do RCNEI está
colocado que:
A autoestima que a criança aos poucos
desenvolve é, em grande parte, interio-28
rização da estima que se tem por ela
e da confiança da qual é alvo. Disso
resulta a necessidade de o adulto confiar e acreditar na capacidade de todas
as crianças com as quais trabalha. A
postura corporal, somada à linguagem
gestual, verbal etc. do adulto, transmite informações às crianças, possibilitando formas particulares e significativas de estabelecer vínculos com elas.
É importante criar situações educativas para que, dentro dos limites impostos pela vivência em coletividade,
cada criança possa ter respeitados os
seus hábitos, ritmos e preferências individuais. Da mesma forma, ouvir as
falas das crianças, compreendendo o
que elas estão querendo comunicar,
fortalece a sua autoconfiança (p. 31).
A tarefa da educadora que se pretende antirracista deve incluir a conversa pedagógica.
É importante falar com um bebê enquanto lhe dá banho, troca as fraldas ou o faz
dormir, dizendo-lhe: como são lindos seus
olhos – sejam eles azuis, pretos, amendoados, “puxadinhos” ou de qualquer outro formato e cor – como sua pele é macia, seja
branca, nas suas infinitas variações, ou negra, nas suas infinitas variações, ou ainda
como seus cabelos são gostosos de serem
acariciados, sejam crespos ou lisinhos... Essas são formas de construir um autoconceito positivo na criança. Um dos conteúdos a
serem trabalhados com as crianças de 0 a
3 anos, de acordo com o RCNCEI, v. 2, é o
Reconhecimento progressivo do próprio corpo
e das diferentes sensações e ritmos que produz
(p.30). Para as crianças de 3 a 6 anos, os RCNEI ainda são mais explícitos, pois está posto, na p. 38 do v. 2, que um dos conteúdos
a serem trabalhados com as crianças nessa
idade é o Respeito às características pessoais
relacionadas ao gênero, etnia, peso, estatura
etc. Portanto, essas atitudes em educadores,
longe de ser uma ação de boa vontade, são
um cumprimento do dever profissional.
4.3. movimENTo –
ExPrESSiviDADE, EQuiLíbrio,
coorDENAÇÃo...
As maneiras de andar, correr, arremessar, saltar resultam das interações
sociais e da relação dos homens com
o meio; são movimentos cujos significados têm sido construídos em função
das diferentes necessidades, interesses
e possibilidades corporais humanas
presentes nas diferentes culturas em
diversas épocas da história (v. 3, p. 16).
Movimentar-se faz parte da ação humana,
nós nos movimentamos instintivamente,
porém graças à capacidade dos seres humanos de refletir sobre o que fazem, muitos movimentos foram transformados em
simbologias, adquirindo significados particulares para cada grupo ou comunidade.
É por isso que em algumas culturas os ho-29
mens beijam-se em sinal de respeito e, em
outras, isto é proibido. Neste conteúdo está
uma rica oportunidade de as educadoras
trabalharem com as crianças os gestos que
servem como meios de comunicar algo e
suas possibilidades distintas, dependendo
da cultura. Também é pertinente o estudo
de danças produzidas em diferentes culturas, ou mesmo as danças existentes no Brasil que agregaram elementos das culturas
negras, indígenas e brancas. Crianças ainda
bem pequenas gostam de dançar ao som de
músicas que podem ser oriundas de variados grupos étnico-raciais. A capoeira é um
universo muito importante, pois conjuga a
música, a dança, o jogo. Os jogos, as brincadeiras, a dança e as práticas esportivas revelam, por seu lado, a cultura corporal de cada
grupo social, constituindo-se em atividades
privilegiadas nas quais o movimento é aprendido e significado (RCNEI, v 3, p.20).
Apresentar para as crianças esse universo
de dança, ritmos, prática esportiva será bastante instigante e trará sempre novidades.
Do mesmo modo, podemos pensar os conteúdos relativos às músicas. Todos os grupos humanos cantam, então, por que não
proporcionar às crianças, desde muito cedo,
o encontro com músicas de vários lugares
do mundo? As crianças são muito curiosas,
como sabemos. Elas ouvem e querem saber
o que está sendo dito, ou porque estão cantando daquele jeito etc. Querem repetir, refazer, fazer diferente. São momentos oportunos para introduzir as percepções de que
todos os povos, inclusive o povo negro, têm
músicas para diferentes situações, nascimento, morte, casamento, aniversários, entre outras festividades. Investigar isso será
uma caminhada estimulante. Também é o
momento ideal para questionar músicas e
brincadeiras musicais que sejam preconceituosas. Muitas destas brincadeiras são mantidas nas salas de aula sob o argumento de
que fazem parte do folclore brasileiro, mas
sabemos que a sociedade brasileira produz
e reproduz o racismo, por isso, temos que,
inclusive, reconstruir coisas do nosso folclore, é por isso que somos sujeitos pensantes,
capazes de mudar coisas.
Podem surgir desses conteúdos pesquisas
sobre lugares do continente africano, tipo
de dança e música, rituais, produção de
instrumentos musicais, enfim, muita ação
e aprendizagem na qual estarão presentes
as duas dimensões do trabalho com a mú-
sica na educação infantil – o fazer musical
e a apreciação – e também a aprendizagem
sobre a história dos negros brasileiros e da
África, dando cumprimento ao que prevê a
Lei n. 10.639/03.
4.4. ArTES viSuAiS – o fAzEr
ArTíSTico, A APrEciAÇÃo E A
rEfLExÃo
Todos os povos representam, artisticamente, sentimentos, desejos, fatos ou ideias que 30
fazem parte de um determinado momento
histórico de suas vidas. No trabalho com
as artes visuais, é importante proporcionar
às crianças o contato com os mais variados
tipos de manifestações artísticas, modelagem, esculturas, instalações, telas entre outros. Elas devem aprender a apreciar a arte
já produzida e serem estimuladas a produzir também a sua arte. Nesse processo de
ensinar e estimular o contato com a arte,
muitas escolas têm realizado trabalhos de
apreciação, reflexão e fazer artísticos a partir de trabalhos de pintores famosos, como
Picasso, Miró etc.
Neste conteúdo, não podemos perder a
oportunidade de apresentar para as crian-
ças a produção das artes visuais dos povos
africanos e indígenas. Elas são riquíssimas e
ampliarão bastante a concepção das crian-
ças sobre quem faz arte. A ideia de que a população negra brasileira e africana produz
artes visuais ainda é muito restrita. Sempre
que vemos alguém falar da arte negra, a pessoa está se referindo à capoeira, à comida
ou alguma coisa do tipo. Faz-se necessário
ampliar esse universo. Sugiro que em todos
os níveis da educação infantil, ao trabalhar
o conteúdo Fazer Artístico, as crianças possam conhecer os “fazeres artísticos” de diferentes povos, com destaque para os povos
negros, sendo incentivadas sempre a se perguntarem como e por que esses povos produzem arte, pois tais perguntas permitirão
que elas se aproximem de histórias, crenças
e valores dos grupos estudados. Tal procedimento também se aplica ao conteúdo Apreciação em artes visuais, pois, como já dissemos, ao lado de Picasso, é preciso conhecer
os artistas negros brasileiros e africanos. As
recomendações nos Referenciais para este
tipo de trabalho são de que:
As crianças podem observar imagens
figurativas fixas ou em movimento
e produções abstratas. Se for dada a
oportunidade para o trabalho com objetos e imagens da produção artística
(regional, nacional ou internacional),
se for possibilitado o contato com artistas, as visitas às exposições etc., o
professor estará criando possibilidade
para que as crianças desenvolvam relações entre as representações visuais
e suas vivências pessoais ou grupais,
enriquecendo seu conhecimento do
mundo, das linguagens das artes e
instrumentalizando-as como leitoras
e produtoras de trabalhos artísticos
(RCNEI, v. 3, p. 96).
Dar às nossas crianças a oportunidade de
conhecer modos de representar o mundo e
os sentimentos de diferentes povos é construirmos com elas a concepção de igualdade
e irmandade entre os seres humanos. Todos
são capazes e fazem arte.31
4.5. fALAr E EScuTAr, PráTicAS
DE LEiTurA E PráTicASDE
EScriTA
A educação infantil, ao promover experiências significativas de aprendizagem da língua, por meio de um trabalho com a linguagem oral e escrita, se
constitui em um dos espaços de ampliação das capacidades de comunica-
ção e expressão e de acesso ao mundo
letrado pelas crianças. Essa ampliação
está relacionada ao desenvolvimento
gradativo das capacidades associadas
às quatro competências linguísticas
básicas: falar, escutar, ler e escrever
(RCNEI, v. 3, p. 108).
Há uma tendência na escola a valorizar
excessivamente o ensino da linguagem escrita, desvalorizando a linguagem oral. Os
RCNEI chamam nossa atenção para o fato
de que devemos estabelecer, na prática educativa, espaços para o desenvolvimento das
duas habilidades, entre outras. Para as educadoras que desejam realizar uma educação
antirracista, a linguagem oral deve de fato
ser valorizada, pois muitos povos negros e
indígenas tinham-na como única forma de
comunicar e transmitir os conhecimentos
do grupo. Atualmente, a linguagem escrita
ganha cada vez mais espaços, mesmo entre
povos que tinham forte tradição oral, isso
não quer dizer que devamos desvalorizar
esse modo de transmissão de conhecimento. É uma ótima oportunidade para pesquisar com as crianças as muitas contribuições
dos povos negros e indígenas na constru-
ção do nosso idioma, por exemplo, palavras
como lenga-lenga, xodó, jaburu etc.
Tanto para o desenvolvimento da linguagem oral como para o da linguagem escrita a contação de histórias ocupa um lugar
de destaque. Nesse sentido, vale identificar
as pessoas do bairro que são consideradas
bons/boas contadores/as de “causos” e convidá-las a participar das aulas. Chamar avós
de diferentes gerações para que contem
histórias de sua infância para as crianças –
sempre tendo o cuidado de trazer pessoas
que representem a diversidade étnico-racial
– é um atividade muito agradável. Também
cabe aqui o convite a militantes de grupos
indígenas e negros para que contem histó-
rias de suas vidas, pode-se convidar clubes
ou associações que se reúnem a partir do
critério de etnicidade ou raça. Essas pessoas
e grupos darão um sabor e um ritmo especial aos momentos dedicados ao desenvolvimento da linguagem oral e escrita, elas poderão ensinar cantos típicos de seu tempo
ou grupo, parlendas, ditados etc.
Em ambas as habilidades é preciso criar um
espaço para a literatura. Ela será o veículo
no qual as crianças tomarão contato com
contos, lendas, mitos e histórias africanas
e indígenas. Achamos muito natural que as
crianças brasileiras conheçam as histórias 32
do Chapeuzinho Vermelho, dos Três porquinhos, do Gato de botas e todos os contos
de culturas europeias e nada conheçam dos
contos africanos e indígenas, povos com
presenças tão fortes em nosso cotidiano.
Vamos contar para nossas crianças as histórias: Caçadores de aventuras, contos africanos ou a história do Reizinho do Congo.
Há caminhos para enriquecer o universo
infantil com referenciais de literatura que
vão além dos europeus, o que precisamos é
estar alertas quando realizamos nosso planejamento para que a riqueza dessas produções não seja ignorada.
4.6. NATurEzA E SociEDADE
Algumas práticas valorizam atividades com festas do calendário nacional:
o Dia do Soldado, o Dia das Mães, o
Dia do Índio, o Dia da primavera, a
páscoa etc. Nessas ocasiões, as crian-
ças são solicitadas a colorir desenhos
mimeografados pelos professores,
como coelhinhos, soldados, bandeirinhas, cocares etc., e são fantasiadas
e enfeitadas com chapéus, faixas, espadas e pinturas. Apesar de certas
ocasiões comemorativas propiciarem
aberturas para propostas criativas de
trabalho, muitas vezes os temas não
ganham profundidade nem o cuidado necessário, acabando por difundir
estereótipos culturais e favorecendo
pouco a construção de conhecimentos sobre a diversidade de realidades
sociais, culturais, geográficas e histó-
ricas (RCNEI, v. 3, p. 154).
Este item e suas subdivisões são tão ricos
para o trabalho da educação antirracista
que, por mais proposições que façamos, não
será possível abarcar minimamente todas as
possibilidades que ele traz. Para facilitar um
pouco mais nossa reflexão, destaco alguns
itens deste eixo estabelecidas nos RCNEI v.
3, procurando o quanto possível indicar caminhos para o trabalho e o desenvolvimento
de atividades de uma educação antirracista.
4.6.1. orGANizAÇÃo DoS
GruPoS E SEu moDo DE SEr,
vivEr E TrAbALhAr, oS LuGArES
E SuAS PAiSAGENS, obJEToS E
SuAS TrANSformAÇõES, oS
SErES vivoS E oS fENômENoS
DA NATurEzA
Um dos conteúdos previstos no RCNEI
para as crianças nessa faixa etária prevê que devamos estimular a participa-
ção em atividades que envolvam histó-
rias, brincadeiras, jogos e canções que
digam respeito às tradições culturais
de sua comunidade e de outros grupos
(v. 3, p. 165). Já abordamos, em outros
momentos desse texto, como podemos
fazer isso. Esse trabalho implica, também, o conhecimento de seus pares e 33
suas histórias, saber de onde veio o seu
amigo, conhecer histórias da vida de
sua colega, relacionar as profissões e
os saberes que pais, avós, tios e outros
parentes reúnem. tudo isto faz parte
desse eixo e proporciona às crianças
muitas informações que as ajudarão
a compreender a diversidade de pessoas que as
cercam. por
que há muitas
pessoas de origem asiática
trabalhando
com vendas,
por exemplo, e
por que outros
grupos, de origens diferentes, trabalham
com coisas diferentes? É um
tema que abre margens a muitas abordagens e estimula a conhecer o outro.
As crianças poderão construir maquetes de
sucatas para representar as diferentes paisagens de lugares da África, rompendo com
a ideia mais divulgada na mídia de que este
seja apenas um continente devastado. Podem ser mostrados filmes, fotos, nos quais
os lugares e as paisagens sejam diferentes,
possibilitando que as crianças compreendam
o continente africano em toda a sua riqueza,
em diferentes épocas. Elas poderão produzir
desenhos comparativos entre Brasil e África.
Turmas diferentes podem realizar projetos
com lugares e paisagens distintas e depois
trocarem entre si seus conhecimentos. No
que se refere aos objetos e suas transformações, também aqui podem ser realizados
trabalhos comparativos sobre a utilização de
um objeto, por exemplo, os talheres – quais
culturas usam talheres ou que tipo de
objetos são utilizados para a alimentação? São sempre
iguais? Por que são
diferentes? Em que
são diferentes? Sempre foram do mesmo
jeito? As mesmas
questões podem ser
feitas com os instrumentos musicais.
Existem sempre oportunidades de incluir
no planejamento a questão da diversidade
cultural, destacando as populações negras e
indígenas, por serem estas as que mais sofrem preconceito e discriminação. Quando
as educadoras forem tratar do conteúdo seres vivos, essa será uma excelente oportunidade para verificar os efeitos que o trabalho
pro-educação antirracista vem produzindo,
pois neste momento a educadora poderá explicitar a problemática do preconceito e da
discriminação. É necessário observar as rea-
ções das crianças, coletar suas ideias sobre
Existem sempre
oportunidades de incluir
no planejamento a questão
da diversidade cultural,
destacando as populações
negras e indígenas, por
serem estas as que mais
sofrem preconceito e
discriminação. 34
os diferentes povos e se necessário produzir
intervenções, a fim de reforçar suas atitudes
antidiscriminatórias, verificando o quanto
está fortalecida a percepção da igualdade
de direitos entre elas e identificando quais
são, ainda, as necessidades do grupo para
melhorar seus conhecimentos sobre o tema
e adquirir uma atitude positiva diante das
diferenças étnico-raciais.
4.6.2. mATEmáTicA – JoGoS
E APrENDizAGEm DE NoÇõES
mATEmáTicAS
Alguns conteúdos específicos da Matemá-
tica podem ser abordados com o olhar da
educação antirracista, sobretudo se permitimos às crianças se perguntarem como os diferentes povos registravam as quantidades
de coisas que possuíam, sejam elas alimentos, animais ou outra coisa qualquer. Há um
espaço riquíssimo no estudo do conhecimento matemático para incluir a produção
do povo africano. É no estudo da geometria
que recomendo o maior enfoque. Podemos
estudar as muitas formas geométricas que
existem partindo de desenhos africanos. Essas formas estão presentes no cotidiano dos
povos africanos, nos penteados de cabelos,
nos desenhos dos tecidos, nas pinturas e esculturas, na produção do artesanato ou em
jogos e brincadeiras, ou mesmo na simbologia religiosa e na representação dos valores.
Uma breve pesquisa na internet dá ao educador inúmeros exemplos de desenhos que
podem ser explorados junto às crianças.
coNSiDErAÇõES fiNAiS
Tivemos duas intenções principais ao escrever esse texto. A primeira, de caráter mais
objetivo, visa colaborar com as educadoras
que trabalham na educação infantil no encontro de caminhos para implementação da
Lei n. 10.639, aprovada em janeiro de 2003,
que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e inclui no currículo oficial de escolas públicas e privadas de Ensino Básico a
obrigatoriedade do ensino da temática História e Cultura Afro-brasileira e Africana, e
cumprimento aos princípios das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-brasileira e Africana,
de 2004. A segunda intenção, mais subjetiva,
está permeada do desejo de ter ampliado o
números de pessoas que compreendam o
currículo da educação infantil como fonte
inesgotável na qual jorram possibilidades de
matar a sede existente na educação brasileira de conteúdos que transmitam conhecimentos positivos sobre os povos negros
e indígenas e que os considerem como conhecimentos absolutamente indispensáveis
para que nossa sociedade possa eliminar o
racismo, o preconceito e a discriminação.35
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