quinta-feira, 24 de setembro de 2015

"Não nascemos racistas, nos tornamos raciasta"

Pap Ndiaye: "Não nascemos racistas, nos tornamos racistas"

Doutor em História e pesquisador do Instituto de Estudos Políticos (IEP) de Paris, especialista em Relações Raciais fala sobre o desafio de superar o racismo na Educação

Lúcia Müzell (novaescola@fvc.org.br), de Paris
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Pap Ndiaye. Foto: Mastrangelo Reino
Pap Ndiaye Doutor em História, professor e pesquisador do Instituto de Estudos Políticos (IEP) de Paris, é especialista em Relações Raciais
Está na Constituição brasileira que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Também consta no documento que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No entanto, sabemos que atitudes racistas e discriminatórias ocorrem na escola, na rua e em casa, envolvendo crianças, adultos e idosos. Diversas situações ficam impunes, são silenciadas ou até encaradas com certa naturalidade por algumas pessoas.

Na opinião de Pap Ndiaye, que já visitou o Brasil algumas vezes para proferir palestras sobre o tema, há muito a fazer a respeito nas escolas, desde a Educação Infantil até o Ensino Superior, seja por meio de ações desenvolvidas em sala de aula, seja com políticas públicas.
Preconceito racial é algo que se aprende?
Pap Ndiaye Existe um grande debate a respeito. Nelson Mandela (1918-2013, ex-presidente da África do Sul e líder do movimento anti-apartheid naquele país) dizia que o racismo é um aprendizado. Concordo. Não nascemos racistas, nos tornamos racistas. O problema é fruto das disposições sociais e a aprendizagem pode acontecer muito rapidamente, logo na infância.

A origem do racismo se dá por causa da escravidão dos negros africanos?
Ndiaye Não, porque antes deles outros povos foram escravizados. Em todas as épocas havia escravos de todas as cores, em todas as regiões do mundo. Historiadores relatam que o racismo, como conhecemos hoje, não existiu na Antiguidade e na Idade Média. A cor da pele tinha muito menos importância do que a do cabelo, por exemplo. Tal como na atualidade, o racismo emerge nos séculos 16 e 17 com a escravidão de pessoas negras, criada com a expansão colonial europeia e as rotas transatlânticas. O que hoje chamamos de racismo é um esforço para justificar a redução à escravidão da população africana. Ou seja, há uma relação profunda entre racismo e escravidão, mas a escravidão moderna, não a praticada na Idade Média e na Antiguidade.

No Brasil, os maiores alvos do preconceito são os negros, pobres e moradores de regiões desfavorecidas. É possível dizer que o contexto social agrava esse problema?
Ndiaye Certamente, os pobres podem ser vítimas de experiências racistas muito violentas. Um caso claro está relacionado à polícia, que é discriminatória com frequência. Ao mesmo tempo, a condição social tem a ver com as questões raciais. Ou seja, de acordo com a classe a que pertence, o negro experimenta o racismo de diferentes formas. Se ele for rico, também pode ser vítima de ações racistas. No mercado de trabalho, se uma negra quiser trabalhar como operadora de caixa de um supermercado, tudo bem. Porém, se quiser ser a diretora, certamente haverá problemas, ainda mais se for em uma rede famosa. E mais: estudos sugerem que, nos Estados Unidos, quanto mais se sobe na pirâmide social, mais se está suscetível às discriminações.

As escolas francesas recebem alunos marroquinos e argelinos, por exemplo. Já as brasileiras, haitianos e bolivianos. Mas a convivência entre diferentes nacionalidades não parece estar minimizando o preconceito. Por quê?
Ndiaye A ideia de que a dimensão multicultural das sociedades pode reduzir o racismo de forma mecânica, é muito simplista, infelizmente. O problema não desaparece só porque há crianças de todas as cores nas classes. Com certeza, vale mais ter estudantes de várias cores de pele do que apenas de uma, mas isso não é a única condição para diminuir o racismo no ambiente. O mesmo pensamento vale para os programas escolares brasileiros para valorizar a África e as contribuições culturais e históricas daquele continente. Eles são importantes, mas não podemos achar que terão o efeito de acabar com o preconceito racial. Não é porque aprendemos coisas sobre a história africana que nos tornamos mais abertos ao outro, sem preconceitos.

O racismo de um país reflete na Educação? De que maneira?
Ndiaye Sim. Na França, por exemplo, a escola é percebida como o lugar onde esse problema não existe. Os professores dizem que não são racistas e adotam um discurso antirracista. Mas não é bem assim. A questão não tem origem simplesmente na boa vontade das pessoas. Não basta dizer que é para ser. É necessário que as práticas sejam coerentes com a fala. Os educadores, por exemplo, podem ter comportamentos discriminatórios ao orientar os estudantes sobre as possibilidades de carreira. Para as de ensino técnico, muitos encaminham os alunos que não são brancos. Para os demais, por sua vez, é recomendado um curso universitário. A escola não está imune a comportamentos discriminatórios. Mas isso ainda não é objeto de estudos aprofundados na França, inclusive porque há uma resistência forte à ideia de que essa instituição possa realmente produzir discriminações.
 Como os profissionais ligados à Educação podem contribuir para combater o racismo?
Ndiaye Investigando sobre a existência do racismo e de discriminações no ambiente escolar. Também é importante ter um verdadeiro programa sobre o tema que seja integrado ao currículo das disciplinas.

É válido trabalhar ações contra preconceitos e racismo desde a Educação Infantil?
Ndiaye Claro que sim. É necessário, obviamente, adaptar a linguagem para que as crianças compreendam o assunto. Pesquisas comprovam que desde a primeira infância as questões de racismo podem se apresentar nos corredores da escola. As crianças ouvem coisas em conversas em casa e as repetem na escola, porém sem más intenções. Sendo assim, o papel dos educadores é essencial. Eles devem prestar atenção no que os pequenos falam e não achar que só porque têm pouca idade não sabem o que estão dizendo. A ideia não é punir ninguém. Mas, sim, explicar, conversar a respeito.

Ter bonecas negras e livros com personagens de diversas raças na escola à disposição estimula as crianças a lidar com as diferenças desde cedo?
Ndiaye Todos os esforços de Educação e de prevenção são válidos. Porém, nos livros infantis, por exemplo, a predominância de personagens brancas continua. Quando há figuras não brancas, elas vivem em um mundo exótico, e apenas com pessoas semelhantes a elas, por exemplo.

Há professores que desejam abordar a questão do preconceito, mas reclamam que as famílias dos estudantes são preconceituosas. O que fazer nesse caso?
Ndiaye Eles não podem recuar. Há chances de que, apesar do contexto familiar, as crianças construam uma personalidade própria, diferente da dos pais. A escola precisa trabalhar a interdição moral do racismo, quer dizer, ensinar que se trata de uma proibição imposta com autoridade. Os alunos precisam aprender que frases com essa conotação são não só ruins, são proibidas. É preciso explicar isso a todos e os educadores têm essa obrigação. Educar também tem a ver com explicar aos estudantes que não podem dizer ou fazer certas coisas. Na França e no Brasil, racismo é ilegal, não somente uma ideia ou um direito de expressão. Não se pode dizer "sou racista e me comporto como tal". Não se trata de uma questão de gosto, de inclinação. É um assunto jurídico.

Usar filmes que abordam a questão da escravidão é válido para conversar com os estudantes sobre preconceito racial?
Ndiaye Sim. Mas não somente aproveitando a ocasião de um lançamento no cinema sobre o passado para levar o tema até a classe. Temos de criar situações e falar da atualidade para levantar o debate. O racismo não é o passado do Brasil ou da França, é o presente.
Fonte: Nova Escola

    terça-feira, 22 de setembro de 2015

    UBUNTU

    Relato atribuído à filósofa Lia Diskin, ocorrido durante o Festival Mundial da Paz em Florianópolis
           Um antropólogo estava estudando os usos e costumes da tribo e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. Como tinha muito tempo ainda até o embarque, ele então propôs uma brincadeira para as crianças, que achou ser inofensiva. Comprou uma porção de doces e guloseimas na cidade, botou tudo num cesto bem bonito com laço de fita e colocou debaixo de uma árvore.
            Aí, ele chamou as crianças e combinou que quando dissesse "já!", elas deveriam sair correndo até o cesto e a que chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro. As crianças se posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado.
           Quando ele disse "Já!", instantaneamente, todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore com o cesto. Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e os comerem felizes.
           O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou por que elas tinham ido todas juntas, se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim, ganhar muito mais doces. Elas simplesmente responderam:
           "Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?"
          Ele ficou pasmo. Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo e ainda não havia compreendido, de verdade, a essência daquele povo... Ou jamais teria proposto uma competição, certo?
    Ubuntu significa: Sou quem sou, porque nós somos.
    “Deus não gosta de ser insultado quando veste Seus ternos escuros”  Paramahansa Yogananda
    Ubutun
           Muitas vezes trabalhamos em uma ideia ou uma convicção tão obsessivamente, para "ajudar" aqueles que consideramos "carentes" ou para mudar os "inferiores" e não percebemos que eles têm o mesmo valor que nós. E até nos surpreendem, muitas vezes, com seu sentido ético e sua maneira de se relacionarem. Falta ainda um pouco mais de tempo para compreendermos que não existe tal coisa como uma hierarquia cultural, ou expressões culturais boas e más, certas ou erradas.
           Na ação de cada gesto ou na consideração que fazemos do “outro,” só conseguimos olhar para o próprio umbigo e frequentemente nos vemos como modelo e referencial. Olhamos as outras manifestações culturais, outros valores, outras práticas sociais pelo nosso prisma, com os valores da nossa cultura. A isso a Sociologia e a Psicologia chamam de "etnocentrismo".
    O ubuntu tem sido uma expressão vivida de uma filosofia coletiva ética entre os povos sul-africanos há séculos.  A pessoa só é humana por pertencer a um coletivo humano; a humanidade de uma pessoa é definida por meio de sua humanidade para com os outros; uma pessoa existe por meio da existência dos outros em relação inextricável consigo mesma, mas o valor de sua humanidade está diretamente relacionado à forma como ela apoia ativamente a humanidade e a dignidade dos outros; a humanidade de uma pessoa é definida por seu compromisso ético com sua irmã e seu irmão.

      O adágio de que “é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança” está alinhado com o espírito e a intenção do ubuntu. A força da comunidade vem do apoio comunitário e de que a dignidade e a identidade são alcançadas por meio do mutualismo, da empatia, da generosidade e do compromisso comunitário. Assim como o apartheid ameaçava corroer esse modo de ser africano tradicional – embora, em alguns casos, ele ironicamente o fortaleceu ao galvanizar o apoio coletivo e ao criar solidariedade entre os oprimidos –, da mesma forma a industrialização, a urbanização e a globalização crescentes ameaçam corromper essa prática secular.

      O ubuntu também é a expressão viva de uma alternativa ecopolítica e antítese do materialismo capitalista, pois se posiciona contra essa interpretação
    ideológica da realidade através de uma filosofia nativa espiritual que está em maior consonância com a Terra, suas criaturas e suas formas vivas, e isso diz respeito a toda a humanidade em toda parte.
    "Dalene Swanson, educadora sul-africana".