Violência urbana, desconfiança no outro, terrorismo. As ameaças do
cotidiano que minam nossas forças são o tema desta conversa com o
filósofo Mario Sergio Cortella. E ele sugere como agir diante das
aflições sem perder a alegria de viver.
por Patrícia Zaidan do MdeMulher
O filósofo e
doutor em educação Mario Sergio Cortella, 61 anos, começa a entrevista
dizendo: “Hoje, o Boko Haram matou cem pessoas no norte de Camarões…
Todo dia há notícias assim”. O grupo fanático que ele menciona tenta
fazer da Nigéria, vizinha de Camarões, uma república islâmica. E usa a
barbárie para suplantar a marginalização política, econômica e social a
que fora relegado pelos últimos governos. Essa facção sanguinária se
tornou conhecida do público ao sequestrar 200 meninas nigerianas numa
escola, em 2014. Muitas foram estupradas. Disputam o noticiário, as
degolas de civis por outro bando de radicais, o Estado Islâmico e,
ainda, os rescaldos do atentado ao semanário francês Charlie Hebdo, com a
rejeição generalizada aos que professam o islamismo, a religião
maometana que não prega o ódio muito menos a matança.
Dialogamos com o mestre que fez carreira na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo sobre esses eventos mundiais e sobre os problemas
locais que causam angústia. Entre eles, a escassez de água e a falta de
luz em São Paulo e outros estados, as balas perdidas no Rio de Janeiro –
que, só no primeiro mês deste ano, fizeram 30 vítimas. Em um rápido
olhar sobre o quadro atual, nota-se um mundo mais rabugento,
intolerante, racista e dando mostras de falência de recursos naturais.
Assim, a conversa é sobre nossa impotência diante dos fatos que nos
oprimem e deixam a sensação de que não podemos fazer nada para mudá-los.
“Mas não é para ficar deprimido com as coisas que nos perturbam”,
provoca o paranaense em seu escritório, na capital paulista. “É preciso
lembrar que todas essas coisas são criações nossas, da humanidade. E
devemos refletir sobre elas se quisermos um futuro mais equilibrado e
saudável.” Cortella lança neste mês
Educação, Convivência e Ética: Audácia e Esperança! (Cortez), livro que, como suas palavras aqui, ajuda na travessia destes tempos difíceis.
Como o seu livro entra nesse panorama de inquietação e incerteza?
Ele fala em audácia e esperança, sobre a formação de valores e a
recusa à fatalidade. Nosso tempo se caracteriza por coisas bem
perturbadoras. Uma delas é o tsunami informacional. Há uma torrente
cotidiana de eventos, que chegam de diferentes fontes e veículos, e nos
preocupam para além das nossas possibilidades de agir. Temos ciência das
coisas e nada podemos fazer, o que gera angústia e impotência. Até
pouco tempo atrás, uma notícia ruim envolvia somente a sua comunidade
imediata. Você ia lá prestar solidariedade ou saciar a curiosidade. Não é
mais assim. No entanto, do ponto de vista da violência, é preciso
lembrar que o mundo está muito menos violento que no século 20 e em toda
história. Dados epidemiológicos e estudos sociais provam isso. O que
ocorre é que somos mais notificados hoje, além de haver uma rejeição
maior à violência.
Há episódios mais veiculados na mídia, e de uma forma que
leva à comoção. O ataque aos chargistas do Charlie Hebdo, na França,
impactou mais os brasileiros do que as notícias sobre as polícias
militares terem matado 1,7 mil jovens negros no nosso país em 2013 ou
sobre 30 feridos por balas perdidas no Rio só em janeiro. Por que a dor
do vizinho não nos mobiliza tanto?
Ela me obrigaria a agir e tomar uma decisão ética. Torna-se fácil
prestar solidariedade a um movimento social no Sudão ou ficar com pena
de uma vítima de explosão no Iraque. É bem mais simples do que lidar com
o menino acampado na porta do meu prédio.
Isso exigiria mais do que consciência tranquila por devotar compaixão ao povo do Sudão. Não é?
Exato. A realidade à minha porta me impeliria a uma ação. Não é
qualquer adesão meramente virtual. Tem sido comum alguém postar, nas
plataformas digitais, um convite para uma passeata. As pessoas dão um
like, mas não vão lá. Pensam que participaram. Assim como se sentem
engajadas ao assinar um manifesto qualquer ou comprar a camiseta escrita
Je Suis Charlie. A transformação de atos em bits, a virtualização das
coisas ocupa várias circunstâncias da vida. É importante, mas não
resolve tudo. Madre Tereza de Calcutá tem esta frase imbatível, que
captura o conteúdo da sua pergunta: “Difícil é amar o próximo. Amar quem
está longe é muito fácil”. A ideia do que seja o próximo é complexa.
Temos a notícia sobre o que acontece no entorno de casa, mas não nos
envolvemos. No fundo, isso também provoca certo desconforto. Embora esse
mal-estar não afete a todos. Muitos, neste momento, estão mais
preocupados com quem ficará na casa do Big Brother Brasil.
A sensação de desconforto atinge do mesmo modo os jovens e os mais velhos?
A minha geração tinha uma causa: acabar com a opressão. Dos 20 anos
aos 30, sob a ditadura, queríamos democracia, liberdade de expressão e
de culto, desejávamos escolher os próprios caminhos, uma sexualidade
nada amarrada, uma conduta feminina que não fosse secundarizada. A
geração atual não vive esses bloqueios nem tem grandes batalhas. A maior
das batalhas hoje é a ambiental. Mas não interessa tanto aos novos,
porque a minha geração não erotizou a ecologia. Conseguimos erotizar um
jeans, um carro, uma balada, uma cerveja… Mas não a causa do meio
ambiente. Ela não se tornou um desejo.
Por que a juventude não se preocupa com o fim dos recursos naturais?
Eles deveriam pensar nisso. Mas é uma causa abstrata. Ninguém via o
problema da água até poucos meses atrás. Agora temos que tomar
providências. A ecologia fala de algo que ao jovem não interessa, que é o
futuro. Essa não é uma má geração, ao contrário, tem censo de urgência,
é criativa e disponível para uma série de interfaces. Mas vive o dia
como se fosse o único. Por quê? Os mais velhos disseram a eles: “Vocês
não terão futuro, não haverá emprego, ar puro, segurança”. Os pais
também vivem repetindo que os filhos não tiveram infância, não souberam
brincar e subir em árvores, como eles. Ora, quem acredita que não tem
futuro nem teve passado só enxerga a alternativa de viver o presente até
o esgotamento. “Aproveite o dia”, é o lema atual. Grandes causas, como o
fim da homofobia e da violência doméstica, demoram. Leva-se tempo para
conquistá-las.
Em um bairro paulistano, moradores fizeram refém um
funcionário da Eletropaulo. Disseram que ele só sairia dali se a luz
voltasse. Em um condomínio, também da capital paulista, moradores andam
pondo o ouvido na parede para fiscalizar quanto tempo demora o banho do
vizinho, quantas vezes ele dá descarga ou lava a roupa. Isso pode gerar
truculência? Acirra os ânimos e cria um clima de desconfiança? Ou é
aceitável?
No caso do refém, é um esgotamento de paciência. O usuário diz à
empresa, ali representada pelo funcionário: “Não aguento mais ficar no
escuro. Não posso ouvir a mensagem gravada informando que o serviço será
prestado em seis horas, depois em oito e, mais tarde, em dez horas”. O
cidadão já foi enganado demais. A atitude é perfeitamente compreensível,
embora possa caracterizar até cárcere privado. Quanto ao controle do
banho, penso que a escassez deve se tornar um tema coletivo. Falta de
água é grave. Isso é que acirra os ânimos. Num transatlântico, se a
terceira classe afundar, a primeira afunda junto. Tomar conta do vizinho
é o primeiro passo para organizar uma reação conjunta à falta de água.
Se um denuncia o outro por desperdício – e deve haver multa para isso -,
não está sendo dedo-duro, mas cuidando do bem de todos. A medida não
pode, porém, se tornar uma atividade persecutória, na qual alguém assume
uma autoridade que não tem e passa a fazer daquilo uma cruzada. Seria
perigoso.
Os autores das ações radicais, no terrorismo, têm entre 20 e
30 anos. Eram crianças no atentado às Torres Gêmeas, em 2001, e, de lá
para cá, enfrentaram preconceito e islamofobia. Viram os muçulmanos se
tornarem mal recebidos no mundo, com dificuldade de entrar em diferentes
países e as mulheres serem proibidas de usar o véu nas escolas. Outro
dado: na França, 70% dos presos são muçulmanos. A maioria morava na
periferia e, sem estudo e trabalho, cometeu pequenos ou médios delitos. O
Estado falhou com eles. Qual é a sua análise sobre as duas coisas?
Não estão presos por serem muçulmanos, e sim porque são estrangeiros
pobres, de uma minoria excluída, encostados nas bordas das grandes
cidades da Europa. A cadeia deve estar cheia de indígenas, em Dourados
(MS); de mexicanos, na fronteira com a Califórnia, nos Estados Unidos; e
de sem-terra em áreas de conflito agrário no Brasil. O problema é a
exclusão. O jovem muçulmano na França é muito assemelhado ao da
periferia das nossas grandes cidades. A arma na mão, no nosso país, é
respeito e dinheiro imediato. Na França, é o terror que oferece
reconhecimento a esses meninos. Alguns islâmicos entendem o suicídio
(caso do homem-bomba) como martírio. Esses jovens se dão importância
desse jeito. O propósito dá sentido à vida. De certo modo, eles se
ressentem do preconceito no mundo todo, não só na Europa. O véu é
problema aqui também. Em Foz do Iguaçu (PR), quem estiver com ele não
tira carteira de motorista. A rejeição, porém, não é de natureza
religiosa. Uma muçulmana da elite usa o véu onde quiser e é até imitada.
Outra coisa é a falta de trabalho para os garotos. Na Arábia Saudita,
por exemplo, a economia é restrita ao petróleo, não tem indústria,
comércio. Eles vão para o Exército ou cedem ao apelo de psicopatas que
recrutam para o terrorismo. Mas eu não tenho uma visão catastrófica do
mundo atual. Há muito mais estados com democracia do que antes. Na
ausência dela, coloca-se um nível de vitamina mais elevado no terror,
caso do Irã e do Iraque, em comparação com a França.
Na democracia, a liberdade de imprensa é imprescindível.
Debates após o atentado ao Charlie se deram em torno do limite do
direito de expressão. Pode-se ser livre e causar dor no outro?
Não deve haver limite para a liberdade de expressão. E ela não causa
dor. Ali ocorreu um excesso de sensibilidade. Quando eu era menino, meu
pai dizia: “Se te xingarem na rua e você for aquilo, então não é
xingamento, é verdade. E, se você não for, não é contigo”. Logo, se
tenho uma religião e alguém tripudia com meus símbolos, não levo em
conta. Não tem a ver comigo, mas com quem fez a piada. Pena dele. A
grande encrenca do fanatismo é tomar como ofensa a postura do outro. Se
quer ser imbecil, seja. Eu não assinaria o Charlie Hebdo. Aquela
escatologia não interessa mais. O humor inteligente está na base da
recusa ao preconceito. Algo como: “Não ria de mim, ria comigo”.
As pessoas estão agressivas na internet. Ali, há todo tipo de
insulto, o que abala os ofendidos. Reagir ao preconceito, dessa forma,
não parece tão simples.
Todo preconceituoso é covarde. O ofendido precisa compreender isso. O
preconceito tem duas fontes: a covardia e a tolice. O intolerante em
relação a etnia, cor da pele, orientação sexual, religião e extrato
econômico tem medo de ser o que é. Ele só se eleva quando rebaixa o
outro. Necessita ver que o outro não serve e não presta para ele poder
valer alguma coisa. É um fraco que teme aquele que não é igual e se
sente ameaçado por ele. Além disso, ser preconceituoso é ser burro e
tonto.
Hoje, há passeata para tudo. O psicanalista Contardo
Calligaris escreveu que levar crianças a uma manifestação de rua parece
perigoso. Mas não levar o filho é mais perigoso para o seu futuro e o
seu espírito. Eles devem participar?
O omisso é cúmplice. Os pais que escondem do filho temas importantes
estão furtando dele a completude na formação – e tendem a fazer da
criança uma vítima de um sistema que pode ser maléfico. A família deve
discutir temas sociais, sim. Se ela decide não ir à rua, deve explicar o
porquê. Há pais que dizem: “Não me meto em política”. Ao agir assim, já
se meteram. Isso é nocivo.
Quando símbolos fortes, que serviam de balizadores para a
sociedade, se enfraquecem, aumenta a sensação de impotência. Exemplos: a
Universidade de São Paulo (USP) vive uma crise financeira e científica e
também moral, por ter abrigado o estupro de alunas por colegas sem que
isso fosse apurado. A maior empresa pública, a Petrobras, está envolvida
em escândalos e corrupção. Por que isso mina nossas forças?
Mexe com a gente porque são nossos símbolos de poder. Mas estão
surgindo outros ícones, como comunidades que se conectam em blogs para
cooperar; dentistas que se juntam para atender sem cobrar; instituições
como Doutores da Alegria, que vão brincar com crianças em hospitais.
Conheço desembargadores, em São Paulo, que saem do tribunal, colocam o
nariz de palhaço e vão entreter doentes. São novos marcadores.
O que é preciso fazer para entender este momento da humanidade que vivemos?
Os chineses acham que devemos lidar com a história e não com o
momento. Você só compreende o hoje se olha a história no seu
desenvolvimento. É bom recordar o que falavam as avós: “Não há mal que
sempre dure nem bem que nunca se acabe”. Portanto, nada de desespero.
Problemas agudos se dissolvem no tempo. Os efeitos colaterais não são
insuperáveis; podemos lidar com eles. É bom lembrar que devemos ter
cuidado num mundo multifacetado, multicultural e multidiverso. Por isso,
não podemos nos fechar em grupos exclusivos – só católicos, só gays, só
muçulmanos -, o que leva à política do gueto e dilui a ideia de
humanidade. Acabar com hinos nacionais também seria bom. Em geral,
dizem: “Pega, esfola, estripa, arranca, mete a espada”. Temos de
enxergar uma sociedade global e interconectada. Não pelo digital e pelo
econômico somente, mas pela antropologia. Ou seja, pela convivência
humana. E que cada um seja capaz de olhar o outro como o outro, não como
o estranho. Homens e mulheres são diferentes, não desiguais. Brancos e
negros são diferentes, mas devem ter os mesmos direitos.
O papa Francisco tem opinado em conflitos entre judeus e
árabes, entre nações fortes e sociedades pobres, sempre na defesa da paz
e da autonomia política dos povos. Repudia o terrorismo, mas critica o
insulto à fé. Denuncia que o mundo é machista com as mulheres e prega
respeito aos gays. Até provocou com a frase: “Sejamos revolucionários”.
Muitos dizem que é o maior estadista do momento. Concorda?
Ele cumpre uma grande tarefa. Traz à tona questões difíceis. Não
mexerá na doutrina, mas no campo da moral. Ele prega o acolhimento dos
excluídos. Diz “Seja revolucionário” no limite que o cristianismo romano
entende como revolução. A inspiração em Jesus ou São Francisco de Assis
é boa para os jovens. O papa é uma expressão de alegria. Trata temas
sérios de modo leve, não é carrancudo, não olha de cima. Assumiu o papel
de defesa da paz onde há conflito. Ele me faz lembrar Benedito Spinoza,
filósofo judeu que propõe a ética da alegria. É algo que precisa entrar
na nossa rotina. Não quer dizer que a sociedade deva seguir no vício do
hedonismo, buscar o prazer em tudo o que faz, seguir na lógica de que a
vida é uma festa e não requer esforço. Isso degrada nossa capacidade,
que deixa de construir algo um pouco mais forte.
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Mario Sergio Cortella