A importância vital do “Nós”
Se o ubuntu pode ser compreendido como uma ontologia, uma epistemologia e uma ética, sua noção mais fundamental é “a filosofia do ‘Nós’”, segundo o filósofo sul-africano Mogobe Bernard Ramose. Em termos coletivos, o ubuntu se manifesta nos princípios da partilha, da preocupação e do cuidado mútuos, assim como da solidariedade.Segundo o filósofo sul-africano Mogobe Ramose, para a filosofia ubuntu, “a comunidade é lógica e historicamente anterior ao indivíduo” e por isso tem a primazia sobre este. Essa comunidade, explica, é uma “entidade dinâmica” entre três esferas: a dos vivos, a dos mortos-vivos e a dos ainda não nascidos
Por isso, Ramose, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, explicou que, na filosofia ubuntu, “a comunidade é lógica e historicamente anterior ao indivíduo. Com base nisso, a primazia é atribuída à comunidade, e não ao indivíduo”. Essa comunidade é definida como uma “entidade dinâmica” entre três esferas: a dos vivos, a dos mortos-vivos (“ancestrais”) e a dos ainda não nascidos.
Entretanto, afirma, dentro desse contexto, o indivíduo não perde sua identidade pessoal e sua autonomia. “A luta contra a colonização na África se baseia justamente no reconhecimento da autonomia individual. No caso da colonização, essa luta se manifesta como um povo que defende e reafirma seu direito como grupo à autonomia ou à liberdade”, explica.
Segundo Ramose, sua luta atual é que o ubuntu tenha uma “presença real e visível” na Constituição sul-africana, a exemplo do que aconteceu no Equador e na Bolívia com relação aos princípios do sumak kawsay . Nesse sentido, para outras culturas, o ubuntu pode “enfatizar a importância vital de levar o ‘Nós’ a sério”. Ou seja, na prática, um polílogo entre culturas e tradições para uma melhor compreensão mútua e a defesa da vida humana.
Mogobe Bernard Ramose é professor de filosofia da Universidade da África do Sul – Unisa e diretor do Centro de Aprendizagem Regional da Unisa, em Adis Abeba, na Etiópia. Doutor em filosofia pela Katholieke Universiteit Leuven, da Bélgica, desenvolve sua pesquisa nos campos da filosofia africana e da filosofia da política, direito e relações internacionais. Trabalhou na Universidade do Zimbábue e de Venda, na África, assim como na Tilburgh University, na Holanda. É autor, dentre outros, de African philosophy through ubuntu (Mond Books, 1999).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o significado de ubuntu?
Mogobe Ramose – Ubuntu é um termo que se encontra em várias línguas banto. Trata-se de duas palavras em uma, a saber: “ubu” e “ntu” no grupo nguni de línguas; botho, “bo” e “tho”, no grupo sotho de línguas; e hunhu, “hu” e “nhu” em xona.
É um conceito filosófico no sentido comum da filosofia como amor à sabedoria. Mas é também um conceito filosófico no sentido estreito da filosofia como disciplina acadêmica. Nesta última acepção, o ubuntu tem três sentidos inter-relacionados básicos: como uma 1) ontologia, 2) epistemologia e 3) ética.
IHU On-Line – Quais são as origens culturais e históricas do ubuntu?
Mogobe Ramose – A linguagem e o pensamento andam de mãos dadas. O pensamento é o instrumento para o cultivo e a construção da cultura. Assim, a linguagem – na acepção ampla de fala, ação e escrita – é a fonte do ubuntu. É comum pensar que as culturas da África indígena ao sul do deserto do Saara são principalmente orais, isto é, desprovidas de escrita. Mas essa concepção é questionável, porque tem uma acepção restrita do significado da escrita e também porque não se aplica à totalidade da África subsaariana, já que a Etiópia, por exemplo, tem sua própria língua escrita, o amárico. A persistência dessa concepção questionável tornou a “tradição oral” como uma das fontes da filosofia ubuntu. Através do veículo da “tradição oral”, a cultura ubuntu e a história dos povos de língua banto continuam sendo transmitidas de uma geração a outra.
É importante lembrar que o nome “África” não foi dado ao continente pelos povos indígenas que vivem nele desde tempos imemoriais. É como um nome de batismo imposto aos povos do Norte do continente primeiro pelos antigos gregos e romanos e, subsequentemente, a todo o continente pelos colonizadores. A divisão da África em duas partes com base no deserto do Saara também é uma imposição. Por conseguinte, é crucial reconhecer que quem nomeia ou batiza faz isso a partir de uma posição de poder. A partir disso, não surpreende constatar que alguns intelectuais indígenas do continente rejeitam o nome “África” como uma forma de expressar resistência ao poder do nomeador que nomeia.
IHU On-Line – Quais são os conceitos centrais envolvidos na ética e na filosofia ubuntu?
Mogobe Ramose – É muito importante notar que, de acordo com a ontologia do ubuntu, be-ing [em inglês, o verbo “ser”], diferentemente de being [o substantivo “ser”], não tem um centro. Assim falamos das noções duradouras que até agora têm sido as marcas de autenticidade do ubuntu. A noção fundamental da epistemologia e ética ubuntu é – tomando o termo emprestado de Tshiamalenga – a filosofia do “Nós”. Nos termos dessa filosofia, os princípios da partilha, da preocupação e do cuidado mútuos, assim como da solidariedade, constituem coletivamente a ética do ubuntu.
IHU On-Line – Qual a relação existente entre a ética ubuntu e a noção africana de comunidade, autonomia e colonização?
Mogobe Ramose – A noção de comunidade na filosofia ubuntu provém da premissa ontológica de que a comunidade é lógica e historicamente anterior ao indivíduo. Com base nisso, a primazia é atribuída à comunidade, e não ao indivíduo. Entretanto, disso não se segue que o indivíduo perca a identidade pessoal e a autonomia. O indivíduo é considerado autônomo e, portanto, responsável por suas ações. De outra forma, toda a teoria e a prática do lekgotla – um fórum para a resolução de disputas entre indivíduos, assim como entre o indivíduo e a comunidade – não teriam sentido justamente porque a pressuposição da autonomia individual não se aplicaria.
A luta contra a colonização na África se baseia justamente no reconhecimento da autonomia individual. No caso da colonização, essa luta se manifesta como um povo que defende e reafirma seu direito como grupo à autonomia ou à liberdade.
IHU On-Line – Em que aspectos o ubuntu ajudou a forjar a sociedade e a política da África do Sul? Nesse sentido, em sua opinião, que pontos ainda precisam ser mais desenvolvidos?
Mogobe Ramose – A primeira fase da transição para a “nova” África do Sul foi parcialmente impulsionada pelo ubuntu na medida em que esse conceito foi usado para dar sentido à constituição interina de 1993. Ironicamente, mas por razões bastante táticas, o ubuntu está completamente ausente da Constituição final de 1996.
Apesar disso, o ubuntu foi usado, de maneira bastante discutível, para justificar a abolição da pena de morte e para dar credibilidade ao projeto Verdade e Reconciliação . No tocante a este último projeto, alguns clérigos cristãos assumiram a vanguarda na justificação da Comissão da Verdade e Reconciliação a partir da base teológica de que o “Deus” cristão endossou a reconciliação ao assumir a carne humana (a encarnação) como meio e método para restaurar a relação rompida entre “Deus” e Adão e Eva, alienados por causa da queda.
O problema dessa justificação é que o mesmo “Deus” até agora não tem disposição nem capacidade para restaurar a relação rompida entre Ele e Lúcifer, que O ofendeu com o pecado da soberba. Mesmo sem esse questionamento da justificação teológica da reconciliação, fato é que a sociedade sul-africana contemporânea continua em grande parte irreconciliada, na medida em que o abismo entre ricos e pobres aumenta, e os pobres se afundam em um abissal buraco negro. Há um imperativo ético de se corrigir isso urgentemente. O ubuntu pode ajudar nesse sentido, insistindo no reconhecimento, no respeito, na proteção e na promoção de sua máxima ética, expressada pelo provérbio “feta kgomo o tshware motho” – se a pessoa está em uma situação em que precisa optar entre proteger e salvaguardar a riqueza ou preservar a vida humana, ela deve então optar pela preservação da vida humana.
IHU On-Line – Como o ubuntu concebe a lei, o direito e a justiça?
Mogobe Ramose – A concepção ubuntu do direito é parte integrante da filosofia do “Nós” que define a comunidade como uma entidade dinâmica com três esferas, a saber: a dos vivos, a dos mortos-vivos (“ancestrais”) e a dos ainda não nascidos. A justiça é a efetivação e a preservação de relações harmoniosas em todas as três esferas da comunidade, e o direito é o instrumento para alcançar esse fim.
IHU On-Line – Na América Latina, alguns países incluíram a ética “sumak kawsay” (bem viver) em suas Constituições, como o Equador e a Bolívia. E o senhor defende que “não há uma razão a priori pela qual o ubuntu não deveria ser a filosofia básica para a democracia constitucional na África do Sul”. Por quê?
Mogobe Ramose – Eu gostaria de saber mais sobre “sumak kawsay”. Em uma resposta anterior, fiz referência ao fato de que, por alguma ironia e certamente por razões táticas, o ubuntu ficou de fora da Constituição final de 1996. A exclusão do ubuntu dessa Constituição é o que estou contestando, porque ela significa: 1) a rejeição de uma filosofia e de um modo de vida que têm sustentado e continuam sustentando os povos indígenas vencidos nas guerras injustas de colonização da África do Sul; 2) a integração forçada desses povos em um paradigma constitucional que não é deles, na medida em que descartou deliberadamente a sua filosofia; 3) a mudança tática do princípio da supremacia (soberania) parlamentar para a supremacia constitucional é a transmutação da injustiça da colonização e de suas consequências na justiça e, portanto, a negação da justiça para os povos indígenas vencidos da África do Sul.
Para a filosofia ubuntu, o tempo não muda a verdade, nem tem o poder de transformar uma injustiça em justiça. É por essa razão que eu defendo a presença real e visível do ubuntu na Constituição sul-africana ainda a ser acordada.
IHU On-Line – O que o ubuntu pode ensinar a outras tradições, culturas e ética não africanas?
Mogobe Ramose – Para outras culturas, o ubuntu pode enfatizar a importância vital de levar o “Nós” a sério. Na prática, isso significaria um ‘polílogo’ [ou polidiálogo] de culturas e tradições que promova a filosofia intercultural para a melhoria da compreensão mútua e a defesa da vida humana.
Por Moisés Sbardelotto | Tradução Luís Marcos Sander
Via Instituto Humanitas Unisinos – IHUImagem: Afrokut
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