quarta-feira, 11 de setembro de 2013
Por dentro e ao redor da arte africana
Por dentro e ao redor da arte africana
Marta Heloísa Leuba Salum (Lisy)
Artigo baseado no texto de apoio do Caderno de Leituras da Ação Educativa (Monitoria) da exposição “Arte da África: obras-primas do Museu Etnológico de Berlin” no Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo.
Revisto e adaptado em 6 de abril de 2004 para publicação neste site.
Ao dizermos "artes da África" (no plural), em vez de "arte africana", podemos estar enfatizando: a África tem Arte. Isso de certa forma minimiza o modo como tem sido tratada a produção estética dos africanos até nossos dias: como objeto científico. Sob o lema “conhecer para melhor dominar”, dizia-se que ela servia a “rituais e sacrifícios selvagens” e que era feita apenas de “ídolos toscos e disformes” — de “fetiches”. Mas, se todas as sociedades - antigas ou atuais - têm sua arte, então por que a necessidade dessa ênfase? Antes de mais nada, é importante percebemos é que, mesmo indiscriminada nos depósitos dos museus da Europa, essa - que se convencionou um dia chamar de arte africana - nunca deixou de resplandecer sua vitalidade eloqüente. Apesar da depreciação e preconceito com que foi antes julgada, ela é, hoje, procurada pelos grandes colecionadores e apreciadores internacionais de arte. Além da produção dos artistas modernos e contemporâneos da África (aliás, muito pouco difundidos entre nós) são muitas as artes desse grande continente, entre elas, as chamadas “tradicionais”. É a essas criações, vindas de centenas de culturas que se dá o nome de “arte africana” — como se fosse uma só! Atualmente são reconhecidas suas técnicas milenares, suas formas sofisticadas e suas “mãos-de-artistas”. A recente exposição das obras-primas da África trazida ao Brasil pelo Museu Etnológico de Berlim tentou mostrar que não há máscaras sem música nem dança, e que há um design digno de nota desde tempos imemoriais na África. Pois, de fato, a arte africana é plural e multidimensional. Mas exposição nenhuma jamais poderia recuperar a força das rochas, fontes e matas que abrigavam estátuas, nem o ambiente dos palácios, templos, altares em que se situavam. Formavam conjunto com outras peças e seu entorno: eram arquiteturais e espaciais, porém muitas não podiam ser tocadas, nem ao menos vistas. E daí tirarmos: nem toda produção plástica da África era visual.
A arte africana não é primitiva nem estática. Há peças datadas desde o século V a.C. atestando uma história da arte africana, mesmo que ainda não escrita por palavras. É certo que muitos dados estão irremediavelmente perdidos: objetos foram destruídos, queimados ou fragmentados ao gosto ocidental e moral cristã; ateliês renomados foram extintos e muitas produções interrompidas durante o período colonial na África (1894-c.1960). Mesmo assim, as peças dessa arte africana remanescente “falam” de dentro de si e por si mesmas através de volumes, texturas e materiais; veiculam um discurso estruturado reservado aos anciãos, sábios e sacerdotes. Alguns artistas, como os do Reino de Benim, exerciam função de escriba, descrevendo a história do reino por meio de ícones figurativos em placas de latão que teriam recoberto as pilastras do palácio real.
O desenho de jóias e as texturas entalhadas na superfície de certos objetos da arte africana também constituem uma linguagem gráfica particular. São padrões e modelos sinalizando origem e identidade que aparecem também na arquitetura, na tecelagem ou na arte corporal. A arte africana é multivocal.
Por exemplo, o tratamento do penteado dado a estátuas e estatuetas pelos escultores revela, muitas vezes, o elaborado trançado do cabelo das pessoas, e, mesmo, a prática cultural, em algumas sociedades, da modelagem paulatina do crânio dos que tinham status (caso dos mangbetu, do ex-Congo Belga, atual República Democrática do Congo-RDC). É, para eles, ao mesmo tempo, expressão do belo. Atribuia-se significado até às matérias-primas empregadas na criação estética — elas davam “força” à obra, acrescida, por fim, quando ela ganhava um nome, uma destinação. Tornava-se, então, parte integrante da vida coletiva. Por isso, diz-se que a arte africana é uma "arte funcional".
A arte africana, porém, não é apenas “religiosa” como se diz, mas sobretudo filosófica. A evocação dos mitos nas artes da África é um tributo às origens — ao passado —, com vistas à perpetuação — no futuro — da cultura, da sociedade, do território. E, assim, essas artes “relatam” o tempo transcorrido; tocam no problema da espacialidade e da oralidade.
Muitas esculturas, como a máscara kpelié dos senufo que introduz este site, não é feita apenas para dançar, mas para celebrar mitos. A estatueta feminina que vai no alto do crânio da face esculpida de que se constitui essa máscara, parece estar gestando, prestes a dar à luz a um filho. O interessante é que, em muitos exemplares similares, essa forma superior da máscara kpeliénão é o de uma mulher, mas de um pássaro associado à origem dessa cultura. Ela, assim como outras criações estéticas da África, constela aspectos da existência e do cosmo, ou seja, tudo o que envolve a humanidade — o Homem em sua interioridade sensorial e na sua relação com o mundo ao redor. E nisso, vemos também que a arte africana é dual.
Algumas peças da arte africana, como as impressionantes estátuas “de pregos” dos bakongo, ou as dos basonge (ou ba-songye (ambas sociedades da R.D.Congo), são, na verdade, um conglomerado composto por uma figura humana de madeira e uma parafernália de outros materiais vegetais, minerais e animais. É uma clara alusão à consciência do Homem sobre a magnitude da Natureza e de sua relação intrínseca com ela.
Podemos dizer que vem desse diálogo entre continente-conteúdo, matéria-pensamento, espaço-energia - diálogo que caracteriza a arte na África - o sopro que renova a Arte Mundial.
Arte Africana

Na África, durante milênios, as pessoas têm criado e armazenado a arte para representar seus sistemas de crenças religiosas, para constar sua historia, para descrever os acontecimentos importantes de suas vidas e de suas comunidades ou para a decoração do entorno em que viviam, a ornamentação pessoal e o embelezamento dos objetos cotidianos que utilizavam.
O primeiro impacto da arte africana foi conhecido no mundo ocidental no final do século X, trazidos de Benin e da atual Nigéria. Entretanto, até ultima parte do século XIX, as obras africanas não tiveram interesse para o colecionador europeu, já que as consideravam como trabalhos manuais de tribos selvagens. Os colecionadores europeus reuniram amplas coleções de trabalhos manuais tribais dando importância ao seu conteúdo estético; mas importantes artistas, em princípios do século XIX, particularmente cubistas e expressionistas, se inspiraram naquela denominada arte tribal, especialmente nas mascaras.
No ano 1903 Maurice Vlamick, um paisagista franco-belga, contempla no mostrador de uma Loja de Paris duas estatuas de madeira; surge assim, como por encanto, a apreciação da escultura africana que tão poderosamente ia influenciar na arte moderna. De tratava de esculturas do Congo, como ele e outros artistas ja haviam visto, mas Vlamick, que acertou em ver nelas, com súbita intuição, uma manifestação de arte autentica, convenceu seu proprietário a vendê-las, mostrou-as a seu amigo francês, o pintor Andres Derain, logo foram ver a Henri Matisse, caudilho desse movimento nascente que rompia com os cânones clássicos; essa entrevista, entretanto, não teve a transcendência que logo lhe daria o artista Pablo Picasso.
A arte africana foi especialmente estudada, descobrindo que o artista cria os objetos como espelhos da natureza, sendo uma analogia de imagens naturais; onde a força vital da natureza se entrelaça com o mistério do universo como experiência do homem fora do contexto tribal.
A escultura que é a arte clássica dos povos de raça negra, tem servido como um meio mais obvio e natural para a expressão dos sentimentos e idéias destes povos. Para o artista africano, a arte tem a missão de tornar visível todo o mundo invisível das idéias.
Em Ifé, considerada ainda hoje por muitos yorubas como a Cidade Santa na atual Nigéria, durante os séculos XII e XIII os artistas elevaram a um grau de perfeição a arte do retrato em barro cozido e em bronze à cera perdida. Esta técnica passa a Benin, cujo florescimento se inicia no século XII e onde o bronze ia conhecer um excepcional desenvolvimento ate o século XIII.
Outra forma de arte é a escultura de madeira, neste estilo se destacam as cabeças de tamanhos maiores que a proporção dos corpos, simbolizando o principio diretor dos mitos, onde a cabeça é um símbolo de força sagrada da criação. Sua arte reflete esta variante humanista de suas formas, porque está embasado na idéia de família solidária. Em conclusão, é a partir do artista e de sua obra o que permite ao grupo social recuperar valores da antiga cultura e religião.
Tanto máscaras como estátuas da África são símbolos religiosos com uma função definida e clara na vida de cada povoado, de tal forma que são parte do conjunto do costume, o qual ordenam e regulam e estão sempre associados à ritos religiosos. A mascara representa o tipo de cara da sociedade a qual pertence, desta maneira, o aspecto da mesma tem um significado estritamente iconográfico, simbolizando nas suas figuras relíquias do Poder Sagrado de Deus e da Natureza.
A máscara protege, capta a força vital, se completa com a vestimenta, ainda que seja considerada em alguns casos, a cabeça, como lugar onde reside a força vital. Sua função é reafirmar em intervalos regulares a verdade e a presença dos mitos na vida cotidiana. Assegurar a vida coletiva em todas as suas atividades . Tenta tirar o homem de sua degradação no tempo histórico mediante representações. Que o homem adquira consciência de seu lugar no universo.
O estatuário é a encarnação dos antepassados. São autênticos símbolos que comunicam sua força à coletividade. As cabeças muito desenvolvidas, assim como os umbigos, são pontos importantes para eles. O primeiro por ser onde se encontra a energia espiritual e o segundo por ser o centro vital que une a mãe ao filho.
Os materiais mais empregados são extraídos da natureza, como, a madeira, o ébano, o marfim, a terracota, a ourivesaria em bronze, cobre, ouro, etc. Tem diferentes formas de expressar a arte. A mais antiga é a pintura das paredes e as esculturas nas rochas. Estas formas se encontram no Saara, Sudão e no Leste e Sul da África e em maior medida, nas regiões tropicais. Estas pinturas têm milhões de anos de antiguidade e tem um grande valor para interpretar a historia.
Rafael Henrique 4º Publicidade e Propaganda
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
terça-feira, 20 de agosto de 2013
JÓIAS QUE CONTAM HISTÓRIA
Jóias que contam História - Colares Africanos - Técnica de contas
Por Carolina Massad Wiberg na sexta-feira, 21 maio 2010. Categoria: Acontecendo por aí ... Tags: acessório, África, arte, bolsas, colares, Hermès, joia, jóias tribais

A Anete ontem falou de um assunto muito legal que são bolsas.
Muitas vezes a gente se prende em jóias como acessórios que a gente carrega no pescoço ou nas orelhas, mas a verdade é que nesse mundo onde as coisas são feitas com matérias tão exclusivas e caras, a palavra jóia pode ser aplicada para diversos objetos que muitas vezes são maiores do que aqueles que normalmente cabem num cofre.
Já vimos aqui carros feitos de ouro, televisões cravejadas de brilhantes mas isso, sinceramente são peças que acabam sendo criadas para ser admiradas e não para ser usadas!

Mas hoje o que eu quero mesmo é partir para o outro lado do assunto. Quero falar de jóias que são montadas em lugares remotos do planeta de maneira artesanal, sem muito cuidado de acabamento muitas vezes devido a falta de ferramentas de precisão. Mas que o resultado é belíssimo.
Essa semana uma cliente entrou na loja e disse que adorava comprar peças grandes e cá entre nós, não existe lugares melhores no mundo para achar essas maravilhas do que a África e o Oriente Médio.
Sei que já falei de jóias tribais aqui, mas elas são tão lindas e bem elaboradas que vale a pena mostrar mais alguns colares desses.

Vou focar hoje na arte de fazer colares de contas na África. Mais que um acessório, são peças de uso diário e que são feitas sob encomenda para cada pessoa que vai usar. Ao contrário de nós ocidentais que usamos uma peça para combinar com nossas roupas. Na arte de fazer esses colares de conta na África as cores e o critério de montar os desenhos é determinado pelo sexo, idade condição social, status, ascendência e descendência!

Cada pedaço da jóia conta um pouco da história da pessoa e da cultura que traz de sua tribo. É incrível!

Na minha próxima viagem a África vou fazer um desses para mim, é uma pena que tenhamos perdido no meio do caminho e nossas peças de joalheria não representem elementos de nossa história.
Hoje trabalhamos com tendências e harmonia de cores, o que também é legal, mas acho o trabalho deles sensacional!

Bom final de semana!!!
terça-feira, 13 de agosto de 2013
CONSTRUINDO A AUTO-ESTIMA DA CRIANÇA NEGRA
CONSTRUINDO
A AUTO-ESTIMA DA CRIANÇA NEGRA
Análise do texto de Inaldete
Pinheiro de Andrade pela professora Leda Beatriz Laurensi do Colégio Estadual Cristo Rei
O texto
trata e retrata as contações de histórias na infância e da
desigualdade hoje, que há entre Tv e Livros. O incentivo à leitura
e o hábito da mesma.
Coloca o
livro infantil como recurso de confronto com a televisão,
fundamentando o conhecimento das relações raciais na produção da
literatura infanto-juvenil brasileira. Apreender o lugar que ocupava
a personagem negra incluida nas histórias. Também, relacionar os
livros recomendáveis e os que apresentam os estereótipos
disseminados na sociedade.
A partir
daí, os livros que reforçavam a imagem do povo negro passou a fazer
parte da Oficina de Leitura.
A
metodologia escolhida foi a de escolher a obra de acordo com a faixa
etária e nivel de leitura do grupo. Buscou-se a análise, a
expressão da turma de forma oral e através dos desenhos. Após os
trabalhos eram expostos e o grupo fazia as observações necessárias
provocando a auto-estima da criançada.
O
trabalho pautou-se no resgate da memória do povo negro, na honra de
pertencer a este movimento, buscando o prazer na leitura e a
construção da auto-estima.
“Resgate
da memória, resgate da identidade do povo negro”.
CONSTRUINDO A AUTO-ESTIMA DA CRIANÇA NEGRA
Inaldete Pinheiro de Andrade
Educadora do Centro Solano Trindade.
Mestre em Serviço Social.
Introdução
Na véspera de iniciar a produção deste texto, acordei após um sonho que,
acordada, eu vivo sonhando: eu montava uma biblioteca em comunidades
pobres, abria as suas portas, muitas crianças vinham visitá-la e eu lhes
apresentava a seção de literatura infanto-juvenil. Elas ficavam fascinadas
e deliciavam-se com cada livro às mãos. Algumas, entre elas, iniciavam a
alfabetização lendo aqueles livros. Acordei com uma sensação de plenitude
e, mantendo os olhos fechados, alimentava o sonho e convocava mais gente
para viajar nesta possibilidade.
O passado
Eu sou da geração da história de Trancoso: as mulheres mais velhas
contando as histórias e a criançada em volta delas, corações palpitando
para ouvir o “Era uma vez...”; era mais uma história iniciada. Lembro da
Moura Torta, a velha invejosa; a Gata Borralheira e a madrasta (a fama que
ficou para as madrastas não é das melhores); a menina que foi enterrada
viva e os seus cabelos transformaram-se em capim que cresceu no quintal,
denunciando a maldade do pai, o agressor. Eram muitas histórias e noutras
noites pedíamos bis, não nos cansávamos, nem as mulheres contadoras:
mamãe, Baía, a velha parteira e outras vizinhas que gozavam de lugar
cativo nas noites em volta da mesa no terreiro, extensão da casa. Depois, o
tempo dos livros; agora, já vinham como presente e a leitura era da minha
responsabilidade. O fascínio de ouvir as histórias não fora perdido com as
demais leituras, que foram incorporadas às atividades do meu cotidiano.
O presente
Hoje, já não há a roda em volta da mesa e o terreiro como extensão
casa; só os terreiros religiosos, que continuam agregando a família negra,
multiplicando-se em várias famílias, pais e mães-de-santo, filhos e filhas em
lugares diversos.
O “em volta da mesa” foi lentamente substituído pela televisão e outras
histórias foram introduzidas no cotidiano das crianças, com o plágio de
fadas no ar ao vivo por três a quatro horas consecutivas, diariamente,
com músicas, desenhos animados e brincadeiras distantes do ambiente da
maioria das crianças brasileiras- Uma amostra perversa para a construção de
referência deste segmento.
O livro infantil passou a ser um recurso de confronto com a televisão,
competição desigual dentro de uma arena onde poucas pessoas sabem e
gostam de ler. Algumas escolas particulares passaram a introduzir a literatura
infantil na disciplina de Português, como leitura obrigatória de um livro por
unidade, sendo que nas escolas públicas, na minha experiência, a existência
desses livros nas prateleiras da biblioteca nunca fora indicada ao menos por
unidade. Para quem tem estímulo da leitura a obrigação é transformada em
prazer e o hábito pode tornar-se uma prática efetiva (conheço uma professora
que está alfabetizando a turma com a leitura de histórias infantis, numa
escola pública de Pernambuco. Quando, por alguma razão, a professora não
encaminha a turma para a biblioteca, há quem reclame).
O prazer da leitura acompanhou-me da infância ao presente e com
ela a literatura infanto-juvenil. Diante do que falei acima, a militância
no Movimento Negro direcionou-me a utilizá-la como instrumento de
identificação das relações raciais no Brasil. Defino: literatura infanto-juvenil,
a literatura feita por pessoas adultas para crianças e jovens. É uma arte que
povoa a imaginação, e por isso, tem o seu espaço na formação da mente
plástica do ser que a ela tem acesso.
Para fundamentar o conhecimento das relações raciais na produção
da literatura infanto-juvenil brasileira, realizei uma pesquisa dos livros
dessa área que chegavam às livrarias do Recife entre os anos de 82 a 84.
Deveria apreender o lugar que ocupava a personagem negra incluída
naquelas histórias. A seleção consistia no livro cujo título, conteúdo e/ou
ilustração, fazia referência a este sujeito. Com este propósito adquiri 80
volumes, uma amostra que incluiu autores e autoras com mais de uma
publicação, o que, aliás, colaborou para avaliar com mais segurança a sua
participação neste recorte. Na análise, fui inclinada a fazer diferenças entre
os livros recomendáveis e os que acrescentam os estereótipos disseminados
na sociedade, com conteúdo explicitamente racista.
Oficina de literatura infanto-juvenil
Os livros que reforçavam a imagem do povo negro passaram a fazer parte
da Oficina de Leitura, onde desenvolvi, em 1987, uma metodologia de resgate
de identidade racial feita principalmente para crianças e/ou jovens nas áreas
periféricas do Recife, nas escolas ou locais comunitários, após contatos com
suas lideranças ou por solicitação das mesmas. Não é preciso lembrar que
a maioria desta população é afro-descendente. A exceção foi quando lancei
dois textos meus, realizando as Oficinas em escolas particulares, onde a
quase totalidade da turma era de origem branca, com uma ou três crianças
de origem negra nas salas de aula. A metodologia exige escolher a obra de
acordo com a faixa etária e nível de leitura do grupo. Pede para se fazer a
leitura individual ou coletiva, de acordo com a disposição do grupo ou
do(a) facilitador(a). Finda a leitura, faz-se a análise, estimulando a expressão
da turma que pode ser oral ou em desenho, dependendo de como a pessoa
ou grupo queira expressar-se (vivi a ocasião em que o silêncio foi a forma de
interpretação de algumas pessoas). Nas interpretações é possível apreender
a manifestação da identidade racial, problema do grupo participante. Feita
a exposição, fazem-se as observações necessárias, situando o presente para
projetar o futuro com o estímulo à promoção da auto-estima da criançada.
Memória, identidade e referência
Para apoiar a metodologia, recorri ao conceito de memória como o
órgão que armazena as experiências positivas e negativas e “que formam o
patrimônio cultural de cada pessoa” (DISTANTE, 1988, p. 88). A memória,
vinda das experiências com a escola, a igreja, os meios de comunicação, com as
expressões orais – piadas, música, anedotas, vaias etc. – mantém em evidência
uma clara referência ao passado escravo vivido pela ancestralidade negra no
Brasil. A introjeção desse passado fragmenta negativamente a identidade
da criança negra quando ela quer “reconhecer-se no passado e imaginar-se
no futuro” (MUSZKAT, 1986, p. 27). Distante define a identidade de uma
pessoa como a consciência de que o seu modo de ser, de viver e de falar seja
semelhante ou até mesmo possa identificar-se com o modo de ser, de viver
e de falar de um determinado povo ou de uma determinada comunidade
ou tribo (DISTANTE, op. cit., p. 83). Juntar os fragmentos da memória
constitui o processo de identidade de uma pessoa.
Pergunto: que orgulho tem a criança negra quando busca na memória a
história do seu povo? Qual o papel do seu povo na história do Brasil? Como
a família que coleciona a mesma memória administra as inquietações – ou
o silêncio – dessa criança?
É a ausência de referência positiva na vida da criança e da família, no
livro didático e nos demais espaços mencionados que esgarça os fragmentos
de identidade da criança negra, que muitas vezes chega à fase adulta com
total rejeição à sua origem racial, trazendo-lhe prejuízo à sua vida cotidiana.
Referências, segundo Distante, são pontos claros no próprio passado
(DISTANTE, op. cit., p. 84). Se a pessoa acumula na sua memória as
referências positivas do seu povo, é natural que venha à tona o sentimento
de pertencimento como reforço à sua identidade racial. O contrário é fácil
de acontecer, se se alimenta uma memória pouco construtiva para sua
humanidade. É a última experiência que a militância do Movimento Negro
depõe ao assumir o novo status – o status de pertencer ao povo negro – e
o mesmo depoimento tenho encontrado na maioria das crianças ou jovens
nas Oficinas de Auto-estima, que também chamo de Identidade Racial. Para
refazer o presente – a identidade – a Oficina leva ao caminho de volta – a
memória – aproveitando ou estimulando no prazer da leitura e, através
dessa, a construção da auto-estima. É tentar refazer a história individual
na história coletiva então desprovida, na maioria das vezes, de referências
encobertas na memória. Positivar o lado negro de cada criança, positivar o
passado escravo, através das histórias de resistências ou de simples amostras
de ilustrações de personagens negras. Nisto consiste a Oficina de Identidade
Racial.
As parcerias
Considerável número de escritores e escritoras têm contribuído para a
dinâmica dessa Oficina, inclusive com textos adequados para os diversos
níveis de leitura. São: Ana Maria Machado, a maior colaboradora; Joel
Rufino dos Santos, Ruth Rocha, Alaíde Lisboa de Oliveira, Giselda Laporta
Nicolelis, Mirna Pinsky, Isa Silveira Leal, Margarida Ottoni, Ronaldo Simãos
Coelho, Lúcia Pimentel Góes, Tenê e Rogério Andrade Barbosa. São livros
com 8 a 16 páginas que cobrem um horário regular de aula. Para jovens com
desenvoltura na leitura indico os livros de Júlio José Chiavenato, Lourenço
Cazarré, Barioni Ortêncio, Lúcia Ramos, Lucília Junqueira de Almeida
Prado, Renato Pallottini, Jair Vitória, Luiz Galdino, além de outros livros
dos escritores e das escritoras acima com a mesma temática. São livros para
serem lidos em casa, dado o maior número de páginas que contêm. Estas
parcerias têm sido presença constante nesta prática, pela seriedade com que
incluíram a questão negra no seu discurso. É bem possível que eu tenha
omitido o nome de alguém que compartilha desta literatura, por falta de
conhecimento.
Outros temas dentro da literatura infanto-juvenil
Outros temas podem também ser discutidos com a mesma metodologia,
como a questão indígena, a ecologia, o gênero, a sexualidade. A oferta do
material produzido atende às minhas necessidades de facilitadora da Oficina,
é só passar um tempo nas livrarias e/ou bibliotecas.
Nesta altura o sonho real continua. Tenho trocado tal experiência com
outras pessoas que já multiplicaram-na além da região metropolitana do
Recife.
Uma liderança de uma das Comunidades Negras Rurais disse que, quando
se olhava, olhava o povo onde ela nasceu e vive, tinha um sentimento tão
estranho de anonimato que ela não sabe e não pode expressar, ainda hoje,
tamanho era o vazio existente. Ela não tinha nenhuma ponte que a ligasse
ao passado. Não tinha memória, não tinha identidade, avalia. No momento
em que ela, junto com dois ou três companheiros, pegaram um fio da meada,
a volta foi fantástica; atravessaram a ponte e tudo reconstituiu-se. Hoje ela
e muitos outros e muitas outras sabem de onde vieram e sabem para onde
vão. A história de vida agora é outra. Hoje lá se fala “o meu povo”.
Visitando as Comunidades Negras Rurais do Estado, ouvi pontos de
identificação em que, com um estímulo a mais, os fragmentos sedimentarão
os processos de identidade racial, fundamental para que cada população
tome às mãos o comando do seu destino histórico no mundo. Continuarei
com o sonho da construção da biblioteca em cada lugar onde não existe
uma.
Ao Professorado
A Oficina de Leitura apresentada não constitui uma receita para ser
seguida à risca. A criatividade de cada facilitador(a) pode movimentá-la como
desejar. O termo facilitador(a) é próprio para a prática porque a função é
tornar fáceis as questões que as crianças encontram na discussão. Para isso,
esta pessoa tem que ser ou estar livre dos estereótipos arraigados na sociedade
brasileira e que corroem como metástase o corpo da sua diversidade racial.
Uma Oficina não é suficiente para crianças brancas ou negras
reconhecerem-se como seres diferentes, com histórias diferentes, nem
superiores nem inferiores. Uma Oficina é um momento de reflexão que
deve ser bem conduzida pelo(a) facilitador(a), de modo que as crianças
saiam dela fortalecidas – e não envergonhadas, brancas ou negras – para
continuar uma convivência onde os estereótipos consigam ser corrigidos e
ambos os grupos vivam com mais saúde, livres do racismo, já que o racismo
destrói quem o manifesta e quem é vítima. Uma Oficina pode dar seqüência
a tantas outras, quando convier. Mãos às obras, literalmente!
Eu estou acordada, terminando o texto e quero fazer deste sonho uma
realidade, tão real quanto a minha memória e a minha identidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGR ̆FICAS
ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Ensaio para uma Literatura Infanto-
juvenil Libertadora. Recife, 1986, mímeo.
________. Cincos Cantigas para se Contar. Recife: Produção Alternativa,
1989.
________. Pai Adão Era Nagô. Produção Alternativa. Recife, 1989.
CARVALHO, Bárbara Vasconcelos de. A Literatura Infantil: visão histórica
e crítica. 5a edição. São Paulo: Global, 1987.
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil: teoria e prática. São
Paulo: Ática, 1983.
DISTANTE, Camelo. Memória e Identidade. In: Identidade e Memória.
Tempo Brasileiro,
no 95, Rio de Janeiro, out./dez de 1998.
ERIKSON, Erik H. Identidade, Juventude e Crise. 2a edição. Rio de Janeiro:
Zahar, 1976
MUSZKAT, Malvina. Consciência e Identidade. Série Princípios no73. São
Paulo: Ática, 1986.
PERROTI, Edmir. O Texto Sedutor na Literatura Infantil. São Paulo: Ícone,
1986.
ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura Infantil e Ideologia. São Paulo: Global,
1985.
SILVA, Ana Célia da. A Discriminação do Negro no Livro Didático.
Salvador: CEAO/UFBa,1995.
ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. 2a edição. São Paulo:
Global, 1982.
________; LAJOLO, Marisa. Literatura Infantil Brasileira. História e
Histórias. São Paulo: Ática, 1984.
123
Inaldete Pinheiro de Andrade
Educadora do Centro Solano Trindade.
Mestre em Serviço Social.
Introdução
Na véspera de iniciar a produção deste texto, acordei após um sonho que,
acordada, eu vivo sonhando: eu montava uma biblioteca em comunidades
pobres, abria as suas portas, muitas crianças vinham visitá-la e eu lhes
apresentava a seção de literatura infanto-juvenil. Elas ficavam fascinadas
e deliciavam-se com cada livro às mãos. Algumas, entre elas, iniciavam a
alfabetização lendo aqueles livros. Acordei com uma sensação de plenitude
e, mantendo os olhos fechados, alimentava o sonho e convocava mais gente
para viajar nesta possibilidade.
O passado
Eu sou da geração da história de Trancoso: as mulheres mais velhas
contando as histórias e a criançada em volta delas, corações palpitando
para ouvir o “Era uma vez...”; era mais uma história iniciada. Lembro da
Moura Torta, a velha invejosa; a Gata Borralheira e a madrasta (a fama que
ficou para as madrastas não é das melhores); a menina que foi enterrada
viva e os seus cabelos transformaram-se em capim que cresceu no quintal,
denunciando a maldade do pai, o agressor. Eram muitas histórias e noutras
noites pedíamos bis, não nos cansávamos, nem as mulheres contadoras:
mamãe, Baía, a velha parteira e outras vizinhas que gozavam de lugar
cativo nas noites em volta da mesa no terreiro, extensão da casa. Depois, o
tempo dos livros; agora, já vinham como presente e a leitura era da minha
responsabilidade. O fascínio de ouvir as histórias não fora perdido com as
demais leituras, que foram incorporadas às atividades do meu cotidiano.
O presente
Hoje, já não há a roda em volta da mesa e o terreiro como extensão
casa; só os terreiros religiosos, que continuam agregando a família negra,
multiplicando-se em várias famílias, pais e mães-de-santo, filhos e filhas em
lugares diversos.
O “em volta da mesa” foi lentamente substituído pela televisão e outras
histórias foram introduzidas no cotidiano das crianças, com o plágio de
fadas no ar ao vivo por três a quatro horas consecutivas, diariamente,
com músicas, desenhos animados e brincadeiras distantes do ambiente da
maioria das crianças brasileiras- Uma amostra perversa para a construção de
referência deste segmento.
O livro infantil passou a ser um recurso de confronto com a televisão,
competição desigual dentro de uma arena onde poucas pessoas sabem e
gostam de ler. Algumas escolas particulares passaram a introduzir a literatura
infantil na disciplina de Português, como leitura obrigatória de um livro por
unidade, sendo que nas escolas públicas, na minha experiência, a existência
desses livros nas prateleiras da biblioteca nunca fora indicada ao menos por
unidade. Para quem tem estímulo da leitura a obrigação é transformada em
prazer e o hábito pode tornar-se uma prática efetiva (conheço uma professora
que está alfabetizando a turma com a leitura de histórias infantis, numa
escola pública de Pernambuco. Quando, por alguma razão, a professora não
encaminha a turma para a biblioteca, há quem reclame).
O prazer da leitura acompanhou-me da infância ao presente e com
ela a literatura infanto-juvenil. Diante do que falei acima, a militância
no Movimento Negro direcionou-me a utilizá-la como instrumento de
identificação das relações raciais no Brasil. Defino: literatura infanto-juvenil,
a literatura feita por pessoas adultas para crianças e jovens. É uma arte que
povoa a imaginação, e por isso, tem o seu espaço na formação da mente
plástica do ser que a ela tem acesso.
Para fundamentar o conhecimento das relações raciais na produção
da literatura infanto-juvenil brasileira, realizei uma pesquisa dos livros
dessa área que chegavam às livrarias do Recife entre os anos de 82 a 84.
Deveria apreender o lugar que ocupava a personagem negra incluída
naquelas histórias. A seleção consistia no livro cujo título, conteúdo e/ou
ilustração, fazia referência a este sujeito. Com este propósito adquiri 80
volumes, uma amostra que incluiu autores e autoras com mais de uma
publicação, o que, aliás, colaborou para avaliar com mais segurança a sua
participação neste recorte. Na análise, fui inclinada a fazer diferenças entre
os livros recomendáveis e os que acrescentam os estereótipos disseminados
na sociedade, com conteúdo explicitamente racista.
Oficina de literatura infanto-juvenil
Os livros que reforçavam a imagem do povo negro passaram a fazer parte
da Oficina de Leitura, onde desenvolvi, em 1987, uma metodologia de resgate
de identidade racial feita principalmente para crianças e/ou jovens nas áreas
periféricas do Recife, nas escolas ou locais comunitários, após contatos com
suas lideranças ou por solicitação das mesmas. Não é preciso lembrar que
a maioria desta população é afro-descendente. A exceção foi quando lancei
dois textos meus, realizando as Oficinas em escolas particulares, onde a
quase totalidade da turma era de origem branca, com uma ou três crianças
de origem negra nas salas de aula. A metodologia exige escolher a obra de
acordo com a faixa etária e nível de leitura do grupo. Pede para se fazer a
leitura individual ou coletiva, de acordo com a disposição do grupo ou
do(a) facilitador(a). Finda a leitura, faz-se a análise, estimulando a expressão
da turma que pode ser oral ou em desenho, dependendo de como a pessoa
ou grupo queira expressar-se (vivi a ocasião em que o silêncio foi a forma de
interpretação de algumas pessoas). Nas interpretações é possível apreender
a manifestação da identidade racial, problema do grupo participante. Feita
a exposição, fazem-se as observações necessárias, situando o presente para
projetar o futuro com o estímulo à promoção da auto-estima da criançada.
Memória, identidade e referência
Para apoiar a metodologia, recorri ao conceito de memória como o
órgão que armazena as experiências positivas e negativas e “que formam o
patrimônio cultural de cada pessoa” (DISTANTE, 1988, p. 88). A memória,
vinda das experiências com a escola, a igreja, os meios de comunicação, com as
expressões orais – piadas, música, anedotas, vaias etc. – mantém em evidência
uma clara referência ao passado escravo vivido pela ancestralidade negra no
Brasil. A introjeção desse passado fragmenta negativamente a identidade
da criança negra quando ela quer “reconhecer-se no passado e imaginar-se
no futuro” (MUSZKAT, 1986, p. 27). Distante define a identidade de uma
pessoa como a consciência de que o seu modo de ser, de viver e de falar seja
semelhante ou até mesmo possa identificar-se com o modo de ser, de viver
e de falar de um determinado povo ou de uma determinada comunidade
ou tribo (DISTANTE, op. cit., p. 83). Juntar os fragmentos da memória
constitui o processo de identidade de uma pessoa.
Pergunto: que orgulho tem a criança negra quando busca na memória a
história do seu povo? Qual o papel do seu povo na história do Brasil? Como
a família que coleciona a mesma memória administra as inquietações – ou
o silêncio – dessa criança?
É a ausência de referência positiva na vida da criança e da família, no
livro didático e nos demais espaços mencionados que esgarça os fragmentos
de identidade da criança negra, que muitas vezes chega à fase adulta com
total rejeição à sua origem racial, trazendo-lhe prejuízo à sua vida cotidiana.
Referências, segundo Distante, são pontos claros no próprio passado
(DISTANTE, op. cit., p. 84). Se a pessoa acumula na sua memória as
referências positivas do seu povo, é natural que venha à tona o sentimento
de pertencimento como reforço à sua identidade racial. O contrário é fácil
de acontecer, se se alimenta uma memória pouco construtiva para sua
humanidade. É a última experiência que a militância do Movimento Negro
depõe ao assumir o novo status – o status de pertencer ao povo negro – e
o mesmo depoimento tenho encontrado na maioria das crianças ou jovens
nas Oficinas de Auto-estima, que também chamo de Identidade Racial. Para
refazer o presente – a identidade – a Oficina leva ao caminho de volta – a
memória – aproveitando ou estimulando no prazer da leitura e, através
dessa, a construção da auto-estima. É tentar refazer a história individual
na história coletiva então desprovida, na maioria das vezes, de referências
encobertas na memória. Positivar o lado negro de cada criança, positivar o
passado escravo, através das histórias de resistências ou de simples amostras
de ilustrações de personagens negras. Nisto consiste a Oficina de Identidade
Racial.
As parcerias
Considerável número de escritores e escritoras têm contribuído para a
dinâmica dessa Oficina, inclusive com textos adequados para os diversos
níveis de leitura. São: Ana Maria Machado, a maior colaboradora; Joel
Rufino dos Santos, Ruth Rocha, Alaíde Lisboa de Oliveira, Giselda Laporta
Nicolelis, Mirna Pinsky, Isa Silveira Leal, Margarida Ottoni, Ronaldo Simãos
Coelho, Lúcia Pimentel Góes, Tenê e Rogério Andrade Barbosa. São livros
com 8 a 16 páginas que cobrem um horário regular de aula. Para jovens com
desenvoltura na leitura indico os livros de Júlio José Chiavenato, Lourenço
Cazarré, Barioni Ortêncio, Lúcia Ramos, Lucília Junqueira de Almeida
Prado, Renato Pallottini, Jair Vitória, Luiz Galdino, além de outros livros
dos escritores e das escritoras acima com a mesma temática. São livros para
serem lidos em casa, dado o maior número de páginas que contêm. Estas
parcerias têm sido presença constante nesta prática, pela seriedade com que
incluíram a questão negra no seu discurso. É bem possível que eu tenha
omitido o nome de alguém que compartilha desta literatura, por falta de
conhecimento.
Outros temas dentro da literatura infanto-juvenil
Outros temas podem também ser discutidos com a mesma metodologia,
como a questão indígena, a ecologia, o gênero, a sexualidade. A oferta do
material produzido atende às minhas necessidades de facilitadora da Oficina,
é só passar um tempo nas livrarias e/ou bibliotecas.
Nesta altura o sonho real continua. Tenho trocado tal experiência com
outras pessoas que já multiplicaram-na além da região metropolitana do
Recife.
Uma liderança de uma das Comunidades Negras Rurais disse que, quando
se olhava, olhava o povo onde ela nasceu e vive, tinha um sentimento tão
estranho de anonimato que ela não sabe e não pode expressar, ainda hoje,
tamanho era o vazio existente. Ela não tinha nenhuma ponte que a ligasse
ao passado. Não tinha memória, não tinha identidade, avalia. No momento
em que ela, junto com dois ou três companheiros, pegaram um fio da meada,
a volta foi fantástica; atravessaram a ponte e tudo reconstituiu-se. Hoje ela
e muitos outros e muitas outras sabem de onde vieram e sabem para onde
vão. A história de vida agora é outra. Hoje lá se fala “o meu povo”.
Visitando as Comunidades Negras Rurais do Estado, ouvi pontos de
identificação em que, com um estímulo a mais, os fragmentos sedimentarão
os processos de identidade racial, fundamental para que cada população
tome às mãos o comando do seu destino histórico no mundo. Continuarei
com o sonho da construção da biblioteca em cada lugar onde não existe
uma.
Ao Professorado
A Oficina de Leitura apresentada não constitui uma receita para ser
seguida à risca. A criatividade de cada facilitador(a) pode movimentá-la como
desejar. O termo facilitador(a) é próprio para a prática porque a função é
tornar fáceis as questões que as crianças encontram na discussão. Para isso,
esta pessoa tem que ser ou estar livre dos estereótipos arraigados na sociedade
brasileira e que corroem como metástase o corpo da sua diversidade racial.
Uma Oficina não é suficiente para crianças brancas ou negras
reconhecerem-se como seres diferentes, com histórias diferentes, nem
superiores nem inferiores. Uma Oficina é um momento de reflexão que
deve ser bem conduzida pelo(a) facilitador(a), de modo que as crianças
saiam dela fortalecidas – e não envergonhadas, brancas ou negras – para
continuar uma convivência onde os estereótipos consigam ser corrigidos e
ambos os grupos vivam com mais saúde, livres do racismo, já que o racismo
destrói quem o manifesta e quem é vítima. Uma Oficina pode dar seqüência
a tantas outras, quando convier. Mãos às obras, literalmente!
Eu estou acordada, terminando o texto e quero fazer deste sonho uma
realidade, tão real quanto a minha memória e a minha identidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGR ̆FICAS
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juvenil Libertadora. Recife, 1986, mímeo.
________. Cincos Cantigas para se Contar. Recife: Produção Alternativa,
1989.
________. Pai Adão Era Nagô. Produção Alternativa. Recife, 1989.
CARVALHO, Bárbara Vasconcelos de. A Literatura Infantil: visão histórica
e crítica. 5a edição. São Paulo: Global, 1987.
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil: teoria e prática. São
Paulo: Ática, 1983.
DISTANTE, Camelo. Memória e Identidade. In: Identidade e Memória.
Tempo Brasileiro,
no 95, Rio de Janeiro, out./dez de 1998.
ERIKSON, Erik H. Identidade, Juventude e Crise. 2a edição. Rio de Janeiro:
Zahar, 1976
MUSZKAT, Malvina. Consciência e Identidade. Série Princípios no73. São
Paulo: Ática, 1986.
PERROTI, Edmir. O Texto Sedutor na Literatura Infantil. São Paulo: Ícone,
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ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura Infantil e Ideologia. São Paulo: Global,
1985.
SILVA, Ana Célia da. A Discriminação do Negro no Livro Didático.
Salvador: CEAO/UFBa,1995.
ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. 2a edição. São Paulo:
Global, 1982.
________; LAJOLO, Marisa. Literatura Infantil Brasileira. História e
Histórias. São Paulo: Ática, 1984.
123
Racismo, Preconceito e Discriminação
RACISMO,
PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO
Considerações Gerais do Texto de Véra Neusa Lopes realizado pela professora Leda Beatriz Laurensi
do Colégio Estadual Cristo Rei de Francisco Beltrão - Paraná - Brasil
A
Educação Escolar possui caráter obrigatório e deve, com base nas
leis vigentes:
-caracterizar-se
como processo de desenvolvimento do indivíduo, identificando um
modelo educacional receptivo às mudanças;
-propor o
conhecimento a partir da realidade com base no diálogo;
-preocupar-se
em colocar o professor na obrigação de romper o papel de reprodutor
do conhecimento, buscando uma nova postura de agilizador da produção
de conhecimento, juntamente com os alunos e a comunidade, construindo
o saber de forma coletiva;
-entender
e colocar o aluno no centro do processo educativo, transformando-o em
sujeito do conhecimento construido e produzido.
O
primeiro passo para que isso se estabeleça é partir da realidade em
que nos encontramos, buscando um projeto coletivo para que as
mudanças sociais aconteçam, num modelo inclusivo e de qualidade,
colocando professores e alunos frente a frente com os novos desafios
da aprendizagem.
Temos
que construir uma nação livre, soberana e solidária, onde o
exercício da cidadania não seja só o privilégio de poucos, mas o
direito de todos.
Para
tanto, devemos ter como objetivos no trabalho pedagógico:
-compreender
a cidadania;
-posicionar-se
de maneira crítica;
-conhecer
e valorizar a pluralidade; e
-questionar
a realidade.
É
necessário também:
-compreender
o conceito de justiça;
-adotar
atitudes de respeito pelas diferenças;
-compreender
a vida escolar como participação (espaço público);
-valorizar
e empregar o diálogo;
-construir
uma imagem positiva de si; e
-assumir
posições segundo seu próprio juízo de valor.
RACISMO, PRECONCEITO E DISCRIMINANjO
Procedimentos didático-pedagógicos e
a conquista de novos comportamentos
Véra Neusa Lopes
Professora e Técnica em Educação do Estado do Rio Grande do Sul.
Bacharel e licenciada em Ciências Sociais, com especialização em
Planejamento da Educação.
Assessora dos Agentes de Pastoral Negros/Rio Grande do Sul,
para Assuntos de Planejamento na Área da Educação.
Considerações iniciais
A educação escolar, de caráter obrigatório, prevista nas leis de ensino
vigentes, deve:
a) caracterizar-se como processo de desenvolvimento do indivíduo
– dinâmico, em permanente transformação e atualização – identificando,
portanto, um modelo educacional não fechado, receptivo às mudanças que
ocorrem na sociedade e que, conseqüentemente, se refletem na escola (micro-
sistema) e nela interferem;
b) propor o conhecimento como processo de aproximações e produto
de construções sucessivas, a partir da realidade, como resultado do
diálogo permanente estabelecido entre os sujeitos, em razão do objeto de
aprendizagem, numa ação contínua de troca e ampliação dos saberes. Isto
significa que não há conhecimento acabado, pronto e que sempre, ao longo
da vida, da qual o tempo escolar é apenas um dos segmentos, o homem tem
oportunidades variadas de realizar aprendizagens que se expandem e que
se completam, tendo o real como base a partir do qual as aprendizagens
acontecem e o diálogo como estratégia principal de sustentação dessas
aprendizagens;
c) preocupar-se em colocar o professor na obrigação de romper com o
papel que, tradicionalmente, tem assumido – de reprodutor de conhecimento
– levando-o a uma nova postura de agilizador da produção de conhecimento
em parceria com seus alunos e a comunidade, na construção coletiva do
saber, o que se traduz pelo processo de ajuda mútua que deve estabelecer-se
entre professor e aluno;
d) entender e colocar o aluno como centro do processo educativo,
transformando-o, efetivamente, em sujeito do conhecimento construído/
produzido, sendo aquele que, com o apoio do professor, aporta novos
saberes aos que já detém, invalidando a idéia de que o aluno aprende porque
o professor ensina.
Considerando o modelo de educação que ora é proposto em âmbito
nacional, essa nova ordem pedagógica coloca a problematização como a
forma adequada de abordagem indispensável para que se construam efetivos
conhecimentos escolares, a partir do estabelecimento de relação crítica entre
as realidades – presente/presente, presente/passado – 3e expectativas de
futuro, com a possibilidade de, usando a criatividade, antever alternativas
de soluções para problemas existentes, como por exemplo, os de racismo,
preconceito e discriminação racial, realidades em nosso meio.
Procedimentos de pesquisa, em nível escolar, são relevantes para o melhor
conhecimento da realidade, embasando medidas e ações que não perpetuem
o “status quo”. Tais procedimentos devem ser utilizados desde os primeiros
anos escolares, associados a outros que vão permitindo a professor e alunos
o alargamento de seus horizontes culturais e, por conseqüência, uma nova
visão de mundo em que todos perdem com á prática do racismo, sentimentos
de preconceito e ações de discriminação racial.
Um olhar atento sobre a realidade do povo brasileiro mostra uma
sociedade multirracial e pluri-étnica que faz de conta que o racismo, o
preconceito e a discriminação não existem. No entanto, afloram a todo
momento, ora de modo velado, ora escancarado, e estão presentes na vida
diária.
Por outro lado, a educação escolar está profundamente comprometida
com um projeto coletivo de mudanças sociais, independentemente da
diversificação cultural dos vários grupos étnicos que compõem a sociedade,
considerando que as diferenças culturais e étnicas são enriquecedoras na
conformação e organização do tecido social.
Então, para que esse compromisso se efetive é fundamental que,
trabalhando com a realidade, num diálogo permanente, numa situação de
aprendizagem contextualizada, usando procedimentos adequados, o aluno se
descubra membro atuante dessa sociedade, na qual pode e deve ser capaz de
interferir e promover modificações que conduzam a um clima de verdadeira
cidadania e democracia.
É preciso insistir sempre que a sociedade brasileira é preconceituosa e
discriminadora em relação à sua população. Em decorrência, o modelo de
educação não tem sido inclusivo, ainda quando permita a entrada de todos na
escola. Todos entram, ou a maioria entra, mas nem todos saem devidamente
escolarizados, aptos a enfrentar a vida como verdadeiros cidadãos. A
instituição escolar precisa desenvolver programas que, reconhecendo as
diferenças e respeitando-as, promovam a igualdade de oportunidades para
todos, o que se traduz pela oferta de escola de qualidade.
Os negros, ao longo da história do Brasil, têm sido, juntamente com os
índios, os mais discriminados. Essa questão deve ser abordada na escola,
incluída objetivamente no currículo, de tal forma que o aluno possa
identificar os casos, combatê-los, buscar resolvê-los, fazendo com que todos
sejam cidadãos em igualdade de condições, a despeito das diferenças e
especificidades que possam existir.
Forçoso é reconhecer, porém, que muitos professores não sabem como
proceder. É preciso ajudá-los, pondo ao seu alcance pistas pedagógicas
que coloquem professor e alunos frente a frente com novos desafios de
aprendizagem.
O combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação, em nível
escolar, deve tomar as mais diferentes formas de valorização da pessoa
humana, povos e nações, valorização que se alcança quando descobrimos
que as pessoas, mesmo com suas dessemelhanças, ainda são iguais entre si
e iguais a nós, com direito de acesso aos bens e serviços de que a sociedade
dispõe, de usufrui-los, criar outros, bem como de exercer seus deveres em
benefício próprio e dos demais.
O esforço a ser desenvolvido, a partir desta proposta que aqui fazemos,
deve extrapolar as fronteiras da sala de aula, derramar-se por sobre a escola
e atingir a comunidade em torno dela, permitindo a todos os envolvidos
novos comportamentos compatíveis com a conquista da cidadania numa
sociedade verdadeiramente democrática.
O desafio está posto. Mãos à obra em busca de soluções!
Racismo, preconceito e discriminação: contrapontos da cidadania
Construir uma nação livre, soberana e solidária, onde o exercício da
cidadania não se constitua como privilégio de uns poucos, mas direito de
todos, deve ser a grande meta a ser perseguida por todos segmentos sociais.
As pessoas não herdam, geneticamente, idéias de racismo, sentimentos
de preconceito e modos de exercitar a discriminação, antes os desenvolvem
com seus pares, na família, no trabalho, no grupo religioso, na escola.
Da mesma forma, podem aprender a ser ou tornar-se preconceituosos e
discriminadores em relação a povos e nações. Para Valente:
a) preconceito racial é idéia preconcebida suspeita de intolerância e aversão
de uma raça em relação a outra, sem razão objetiva ou refletida. Normalmente,
o preconceito vem acompanhado de uma atitude discriminatória;
b) discriminação racial é atitude ou ação de distinguir, separar as raças,
tendo por base idéias preconceituosas.
O Programa Nacional de Direitos Humanos considera o preconceito
como atitude, fenômeno intergrupal. dirigido a pessoas ou grupos de pessoas;
é predisposição negativa contra alguém; algo sempre ruim: predisposição
negativa, hostil, frente a outro ser humano; desvalorização do outro como
pessoa, considerado indigno de convivência no mesmo espaço, excluído
moralmente.
A discriminação supervaloriza determinadas culturas, dá ao dominador
a idéia de que é o melhor e desenvolve no discriminado o sentimento
de menos-valia. Permite que a sociedade seja considerada sob duas óticas
distintas e divergentes:
. a do discriminador, que manda e se considera o mais capaz, o mais
culto, o dono do mundo e das pessoas, que sempre estabelece as regras do
jogo que lhe interessa, que mantém sua auto-estima em alta às custas do
outrem.
. a do discriminado, que fica à mercê das decisões do discriminador, o
qual tenta organizar a vida do grupo social em função de seus interesses e
privilégios; que tem de lutar bravamente para elevar sua auto-estima, que
tem de construir sua identidade a duras penas.
A escola, como parte integrante dessa sociedade que se sabe preconceituosa
e discriminadora, mas que reconhece que é hora de mudar, está comprometida
com essa necessidade de mudança e precisa ser um espaço de aprendizagem
onde as transformações devem começar a ocorrer de modo planejado e
realizado coletivamente por todos os envolvidos, de modo consciente.
Professor e alunos devem organizar-se em comunidades de aprendizagem,
onde cada um chegue com seus saberes e juntos vão construir novos
conhecimentos num processo de trocas constantes, desmistificando
situações de racismo, preconceito e discriminação arraigados nos grupos
sociais e nas pessoas individualmente. Nesse aprender coletivo, professor e
alunos acabam por enriquecer o processo educativo para ambos os sujeitos
da aprendizagem. Especialmente quando se trata de racismo, preconceito e
discriminação, o investigar e o aprender juntos garantem aprendizagens de
melhor qualidade, porque ruídas coletivamente.
A educação escolar deve ajudar professor e alunos a compreenderem que
a diferença entre pessoas, povos e nações é saudável e enriquecedora; que
é preciso valorizá-la para garantir a democracia que, entre outros, significa
respeito pelas pessoas e nações tais como são, com suas características
próprias e individualizadoras; que buscar soluções e fazê-las vigorar é uma
questão de direitos humanos e cidadania.
Aprendendo a se ver, a ver o seu entorno (família, amigos, comunidade
imediata) de modo objetivo e crítico, a comparar todos elementos com os de
outros tempos e lugares, a criança desenvolve comportamentos adequados
para viver numa sociedade democrática.
A proposta didático-pedagógica apresentada, com algumas pistas para
o professor, leva em conta esses contrapontos da cidadania – o racismo, o
preconceito e a discriminação – e destaca sempre que:
a) quem tem idéias preconceituosas e discrimina – menospreza ou
despreza outras pessoas, grupos sociais, povos ou nações; desrespeita aquele
ou aquilo que considera diferente e, por isso, inferior; domina, subjuga
(pois assume o papel de amo e senhor em relação ao outro), pensa deter
o poder, gera conflito, é intolerante, tem mania de superioridade, mesmo
quando não é o melhor; pensa que os demais são inferiores e devem ser seus
subalternos; escraviza; induz o outro a ter baixa auto-estima.
b) quem aprende a não prejulgar e a não discriminar – respeita as
diferenças entre pessoas, povos e nações, busca o equilíbrio nos grupos a
que pertence, reconhece que a vida só é possível porque pessoas, povos e
nações são interdependentes; tem auto
estima em alta; exercita o bem-querer em relação aos outros (pessoas,
povos e nações).
A proposta pedagógica deve voltar-se, assim, para um trabalho continuado
de valorização das pessoas, povos e nações, num combate permanente às
idéias preconcebidas e às situações de racismo e discriminação com que nos
defrontamos no dia-a-dia.
Não esquecer dos objetivos
Quando a finalidade é construir a cidadania numa sociedade pluriétnica
e pluricultural. como é o caso da sociedade brasileira, é preciso que se tenha
presente um elenco de objetivos com os quais se deve trabalhar. Por exemplo,
os Parâmetros Curriculares Nacionais constituem, hoje, uma referência
que nenhum professor pode desconhecer. A seguir, estão sugeridos alguns
objetivos que podem nortear o trabalho a ser realizado. Outros poderão ser
buscados e selecionados.
Como objetivos do ensino fundamental, de caráter mais geral, podemos
destacar:
• Compreender a cidadania como exercício de direitos e deveres políticos,
civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade,
cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo
para si o mesmo respeito.
• Posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes
situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos
e de tomar decisões coletivas.
• Conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais,
materiais e culturais como meio para construir progressivamente a
noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência
no país.
• Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural
brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos, e
nações, posicionando-se contra qualquer discriminação, baseada em
diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou
outras características individuais ou sociais.
• Questionar a realidade, formulando-se problemas e tratando de
resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a
intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos
e verificando sua adequação.
Contidos nos objetivos do ensino fundamental estão os objetivos de
ética, também propostos pelo PCN, relevantes na medida em que o racismo,
preconceito e discriminação têm a ver com valores e atitudes do homem em
suas relações quotidianas com os outros homens. Sugerimos os que seguem,
podendo o professor selecionar outros:
• Compreender o conceito de justiça baseado na eqüidade e sensibilizar-
se pela necessidade da construção de uma sociedade justa.
• Adotar atitudes de respeito pelas diferenças entre as pessoas, respeito
esse necessário ao convívio numa sociedade democrática e pluralista.
• Compreender a vida escolar como participação no espaço público,
utilizando e aplicando conhecimentos adquiridos na construção de
uma sociedade democrática e solidária.
• Valorizar e empregar o diálogo como forma de esclarecer conflitos e
tomar decisões coletivas.
• Construir uma imagem positiva de si, o respeito próprio traduzido
pela confiança em sua capacidade de escolher e realizar seu próprio
projeto de vida e pela legitimação das normas morais que garantam, a
todos, essa realização.
• Assumir posições segundo seu próprio juízo de valor, considerando
diferentes pontos de vista e aspectos de cada situação.
Cabe ao professor selecionar e retirar do projeto pedagógico em
desenvolvimento na escola aqueles objetivos que digam respeito à cidadania
e à democracia e permitam ao aluno um trabalho continuado contra o
racismo, o preconceito e a discriminação.
Definidos a partir do projeto pedagógico e previstos nos planos de curso,
os objetivos de ensino deverão expressar os conceitos, os procedimentos,
as atitudes e os valores a serem construídos em sala de aula por alunos e
professores.
Procedimentos didático-pedagógicos
Por fim, chegamos à proposta que deve ser lida e entendida como um
conjunto de pistas para ajudar o professor na árdua tarefa de trabalhar com
seus alunos questões de racismo, preconceito e discriminação. Não pretende
colocar o professor numa camisa-de-força, apenas ajudá-lo a encontrar seus
próprios caminhos, em que terá como parceiros seus alunos.
Para facilitar, apresentamos um cenário: escola de 1a à 4a série, situada em
uma comunidade na periferia de uma cidade de pequeno porte; Classe de 2a série
ou 1a ciclo do ensino fundamental, com 30 alunos, entre 7 e 10 anos de idade;
crianças brancas de origem italiana, outras de origem alemã, alguns negros e
uns pouco descendentes de japoneses; professora negra (poderia ser de qualquer
outra etnia); quando se desentendem, é comum que sejam ouvidas expressões
como negro, saroba, japa, alemão batata, gringo, sendo que os atributos que
acompanham a expressão negro são sempre os mais ofensivos.
O que poderá ser feito?
• Criar situações que despertem o interesse das crianças para a questão
de semelhanças e diferenças entre os componentes da classe, incluindo
a professora. Exemplo: reunir as crianças em roda para conversarem
sobre cada um, explorando perguntas tais como “Quem sou?” e
“Como sou?” Deixar que uma criança comece ou, se for muito difícil,
começar pela professora que dará seu endereço, idade, filiação e se
apresentará com suas características físicas, gostos, preferências e usar,
se for possível, com naturalidade a expressão “sou negra”, se for o caso,
ou “sou árabe”, ou “sou alemã”, ou “sou índia”, ou “sou nissei”, ou
“sou sansei”. Observar a reação das crianças; não fazer comentários.
Fazer com que todos se apresentem.
• Se for necessário, desenvolver essa conversação por vários dias, de
modo que todos tenham a oportunidade de falar. Exercitar com os
alunos a habilidade de falar para um grupo e de ouvir os outros.
• Conversar com as crianças sobre o fato de todos serem brasileiros e
estabelecer com elas a diferença entre descendência e procedência.
• Pedir a ajuda dos pais, se for o caso, para que as crianças possam fazer
um retrato falado de si mesmos. Envolver os pais nas atividades, se
julgar oportuno e conveniente.
• Propor que as crianças, aos pares, se observem e expressem oralmente
como vêem o seu parceiro. Descrever como vêem a professora.
Comentar as verbalizações.
• Pedir às crianças que tragam para sala de aula uma fotografia recente.
Tirar uma fotografia de toda a turma. Observar com as crianças as
fotos isoladamente e a foto coletiva. Registrar as observações. Examinar
fotos mais antigas e registrar as observações.
• Verificar a existência de algumas diferenças e semelhanças constatadas.
Registrar as descobertas em uma folha de papel de embrulho, que
poderá ir sendo usada ao longo do trabalho. Por exemplo, algumas
diferenças: alguns são meninos, outras são meninas; nem todos têm
a mesma altura; todos têm nome e sobrenomes diferentes; uns são
magros, outros são gordos, uns têm a cor da pele bem clara, outros têm
a cor da pele mais escura; uns são brancos, de origem italiana, outros
são brancos de origem alemã, outros são de origem japonesa, outros
são de origem afro-brasileira. Existem semelhanças como: todos têm
entre 7 e 10 anos, todos moram no mesmo bairro, todos são brasileiros,
embora as origens possam ser diferentes; todos são saudáveis.
• Analisar com a classe os dados colhidos. Ajudar os alunos a observar
que apresentam diferenças e semelhanças, entre si e com a professora.
Observar, por exemplo, que a cor da pele não serve para definir quem
é branco ou não branco, porque há negros que têm a pele branca, há
descendentes de japoneses que também têm a pele bem clara; que se
vestem de modo diferente e podem ter hábitos alimentares e tradições
diferentes por causa de sua etnia ou de sua procedência.
• Trabalhar com as crianças a questão dos direitos humanos e dos direitos
da criança. Escolher, com elas, textos, poesias e canções que falem desses
direitos. Decodificar as mensagens. Dramatizar. Cantar. Conhecer a
vida dos autores. Buscar informações na cultura popular. Trabalhar
com autores negros brasileiros da música popular brasileira.
• Se possível, organizar visitas a instituições culturais, museus, casas de
cultura, existentes na comunidade ou na cidade, para aprender mais
sobre cultura, diversificação cultural, etnias formadoras da sociedade
brasileira.
• Explorar as diferentes culinárias e outras manifestações culturais
existentes, preservadas pela comunidade. Pesquisar, na comunidade,
possíveis traços culturais de outros grupos étnicos, além dos negros.
• Destacar a questão do negro e levar a criança a observar se há, na
sala de aula, meninas e/ou meninos que usam penteados afros. Levar
as crianças a observar como é difícil e demorado fazer um penteado
afro nas mulheres. Recortar em jornais e revistas ilustrações de pessoas
que estão usando um desses penteados. Expor. Trazer para sala de
aula ilustrações de artistas, como Rugendas e Debret, que, já na época
colonial, mostravam como eram os penteados dos negros no Brasil.
Comparar com os penteados atuais (Figuras 1 e 2).
Figuras 1: Debret – Escravos de diferentes nações.
Figura 2: Debret – Negros de diferentes nações.
• Planejar com as crianças a busca de mais informações sobre os negros
brasileiros. Organizar na sala de aula cantinhos das surpresas, onde
poderão ser expostos reálias, documentos, ilustrações, vestimentas.
Usar a entrevista como recurso para descobrir mais sobre o assunto
em pauta. Descobrir, na comunidade, pessoas negras que tenham
algo interessante para contar, permitindo reconstituir a história da
localidade.
• Comparar, com as crianças, as formas de vida dos negros da comunidade
onde está a escola com o modo de vida dos escravos. Novamente, valer-
se de ilustrações de Rugendas e Debret (Figuras 3, 4, e 5). Recriar, com
as crianças, a partir dos materiais a que tiverem acesso, a representação
das idéias trabalhadas.
Figura 3: Rugendas – Negros serradores de tábuas
Figura 4: Debret – Negro vendedor de carvão e vendedoras de milho
Figura 5: Debret – Vendedores de capim e leite
• Localizar, com o auxílio de recursos audiovisuais disponíveis, os
pontos de onde vieram os negros. Refazer, então, as rotas seguidas.
Localizar os pontos de entrada dos negros no Brasil. . Levantar alguns
dados dos dias atuais e verificar semelhanças e diferenças de modos de
vida dos negros. Observar, com as crianças, que a África é um grande
continente, formado por muitas nações. Descobrir de quais nações
vieram os negros que chegaram ao Brasil.
• Pesquisar, em conjunto com as crianças, sobre hábitos e costumes que
os brasileiros têm e que são de origem africana. Levantar o vocabulário
de origem africana.
• Questionar com as crianças se elas conhecem alguém que não gosta de
outras pessoas porque são negras, são pobres, são “polacos”, são judeus
ou são ciganos, que não gostam de índios porque são “preguiçosos”.
O que elas pensam disso? O que podem e querem fazer para que isso
não aconteça em sua classe, em sua escola, em suas famílias?
• Encorajar os alunos a que expressem seus sentimentos de diferentes
formas verbais e não verbais. Conversar sobre o significado de cada um
deles e os possíveis motivos pelos quais existem. Usar a dramatização
como forma de expressão.
• Utilizar diferentes formas de comunicação verbal e não verbal para
apresentar os trabalhos realizados e relativos às questões de preconceito
e discriminação raciais e étnico-culturais.
• Produzir textos coletivos, abordando questões de racismo, preconceito
e discriminação.
• Criar espaços, no âmbito da escola, para que os alunos possam
apresentar jornal falado, jornal mural, dramatizações cujo conteúdo
trate da diversificação étnica e cultural existente no Brasil e do papel
que o negro tem desempenhado na formação da sociedade brasileira.
• Criar situações em que as crianças possam imaginar como será o
futuro se nada for feito para eliminar o racismo, o preconceito e a
discriminação. Representar esse futuro.
• Propor às crianças que elaborem um documento, onde expressem as
ações que podem realizar, para que não haja mais racismo, preconceito
e discriminação na escola, entre seus amigos, na comunidade, nas
famílias, assumindo responsabilidades no cumprimento dos direitos e
deveres de cada um como cidadãos.
• Criar condições para que as crianças desenvolvam o sentido do nós, de
pertencer a um grupo, com direitos e deveres, com objetivos comuns,
mantendo, contudo, sua individualidade e diferenciação cultural,
étnica e de gênero.
• Pesquisar sobre artistas que tenham a ver com: diferenciação cultural,
cultura nacional, preconceito, discriminação. Recriar as obras. Analisar
com as crianças, por exemplo, algumas obras de Aleijadinho, danças
de origem africana ainda existentes, manifestações culturais como os
maçambiques, em Osório/RS.
• Visitar museus e casas de cultura, se possível, como oportunidade
para aprender mais sobre cultura, democracia, cidadania e etnias que
formaram a sociedade brasileira.
• Pesquisar, na comunidade, possíveis traços culturais de outros grupos
étnicos, além dos deixados pelos negros. Pedir a colaboração de pessoas
entendidas para explicá-los à classe. Descobrir modos de preservar esses
traços. Descobrir na comunidade pessoas negras que tenham algo a
contar.
• Produzir textos coletivos, abordando questões de preconceito e
discriminação, e organizar coletâneas, colocando-as à disposição da
comunidade escolar.
• Observar o grupo para perceber os sentimentos de cada criança em
relação à diferenciação étnica, cultural, de gênero, etc., existentes na
sala de aula.
• Fazer perguntas ao grupo sobre o que sabem sobre usos e costumes, a
língua e as artes dos povos representados na sala de aula. Mapear com
as crianças a situação detectada. Levantar informações sobre a cultura
africana.
• Listar os sentimentos que os componentes do grupo manifestam
sobre as questões em estudo. Por exemplo: felizes, infelizes, surpresos,
curiosos, chocados, envergonhados, orgulhosos. Analisar com o grupo.
Valorizar os positivos. Buscar formas de minimizar os negativos.
• Pesquisar situações de preconceito ou discriminação, bem como de
valorização das pessoas, apresentadas pelos meios de comunicação.
Analisar com as crianças, identificando os pontos negativos e os
positivos. Questionar em grupo o que poderá ser feito para mudar a
situação. Criar faixas, cartazes com manchetes, destacando os aspectos
positivos.
• Selecionar um problema, dentre os levantados, e elencar possíveis
soluções. Considerar para cada solução quais serão as conseqüências
esperadas.
• Repensar, em grupo, novas soluções, quando a adotada não estiver
apresentando resultados desejáveis.
Este elenco de procedimentos e outros tantos que o professor, com
certeza, descobrirá, podem ser desenvolvidos em inúmeras situações ao
longo do ano letivo, quando o foco poderá ser outra etnia.
O Brasil precisa de professores dispostos a fazer a revolução das pedagogias.
Cada um de nós está convocado a entrar nesse grupo.
REFER ̄NCIAS BIBLIOGR ̆FICAS
AZEVÊDO, Eliane. Raça. Conceito e padrão. São Paulo: Ática,1990.
BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação
Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros
curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997.
________. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas
transversais. Brasília: MEC/ SEF, 1997.
BRASIL, Ministério da Justiça. Secretaria Nacional dos Direitos Humanos.
Suplemento Especial Direitos Humanos. Encarte do Jornal Radcal. Fundação
Atos Bulcão, 1998.
CADERNOS CEDES. Centro de Estudos Educação e Sociedade. Educação
e diferenciação cultural. Índios e negros, n. 32. Campinas: Papiros, 1993.
CLABBY John; DE CLAIRE, Joan. Inteligência emocional. E a arte de
educar nossos filhos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
FLEMING, Robert (org.). Currículo moderno. Um planejamento dinâmico
das mais avançadas técnicas de ensino. Rio de Janeiro: Lidador, 1970.
MORAIS, Regis (org.). Sala de aula: que espaço é esse. Campinas: Papiros,
1986.
MUNANGA, Kabengele. Negritude. Usos e sentidos. São Paulo: Ática,
1996.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Governo Fernando Henrique.
Construindo a democracia racial. Brasília: Presidência da República, 1998.
SHAPIRO, Lawrence E. Inteligência emocional. Uma nova vida para seu
filho. Rio de Janeiro: Campus, 1998.
VALENTE, Ana Lúcia E. F. Ser negro no Brasil hoje. São Paulo: Moderna,
1998.
ANEXO
Subsídios de apoio
O professor encontrará nas matérias, a seguir indicadas, informações
relacionadas ou diretamente pertinentes ao tema desenvolvido, que
poderão indicar pistas para enriquecimento ou aperfeiçoamento do
trabalho pretendido. São artigos da Revista do Professor, com divulgação
nacional e, praticamente, presente em todos os municípios brasileiros.
ANDRADE, Maria Márcia Brito. Conhecendo os heróis e a luta do
negro no Brasil. Revista do Professor, n. 41, jan./mar. 1995.
________. Povos indígenas. Tradições, usos e costumes merecem ser
resgatados na escola. Revista do Professor, n. 46, abr./jun. 1996.
________. Escola promovendo resgate de cultura popular. Revista do
Professor, n. 49, jan./mar. 1997.
________. Dramatização e teatro a partir da sala de aula. Revista do
Professor, n. 51, jul./set. 1997.
BRITTES, Alexandre Alves. Jornal Falado. Recurso utiliza diferentes
meios e instrumentos de comunicação. Revista do Professor, n. 56, out./
dez. 1998
CINEL, Nora Cecília Bocaccio. Memória. Funções no processo de
aprendizagem. Revista do Professor, n. 32, out./dez. 1992.
ENTRELAÇANDO vida e arte no lugar onde vivemos. Cotidiano do
aluno torna-se mais significativo. Revista do Professor, n. 50. abr./jun.
1997.
FERREIRA, Maria Lúcia Canto. Professores promovem integração pelo
teatro. Revista do Professor, n. 42, abr./jun. 1995.
________. Teatro na escola. Uso dos jogos dramáticos gera efeitos
benéficos. Revista do Professor, n. 54, abr./jun. 1998.
FISCHER, Beatriz T. Daudt. Desafio: ensinando a partir da realidade.
Revista do Professor, n. 32, out./dez. 1992.
202
Racismo, preconceito e discriminação
GRINSCHPUN, Iafa. Autonomia. Processo requer relação de respeito e
afeto. Revista do Professor, n. 32, out./dez. 1992.
HEMIELEWSKI, Ada Maria. Trabalhar poesia é aprender a olhar e a
sentir o mundo. Relação que se estabelece com a criança é lúdica e
emotiva. Revista do Professor, n. 27, jan./mar. 1994.
LOPES, Jader Janer Moreira. Aprendendo estudos sociais na cozinha.
Revista do Professor, n. 48, out./dez. 1996.
LOPES, Verá Neusa. 13 de maio. Centrando o negro brasileiro como
sujeito da História. Revista do Professor, n. 53, jan./mar. 1998.
MACHADO, Raul José Moraes. Linha operacional para o ensino
da Língua Portuguesa. Objetivo é desenvolver as potencialidades de
comunicação. Revista do Professor, n. 35, jul./set. 1993.
________. Clube de imprensa. Atividade interdisciplinar que envolver
professores e alunos. Revista do Professor, n. 36. out./dez. 1993.
MÁRSICO, Leda Osório. Bandinha rítmica e a magia de fazer música.
Revista do Professor, n. 29, jan/mar. 1991.
MAZZOCHI, Luiz Fernando. Obras de arte são recriadas na pré-escola.
Revista do Professor, n. 50, abr./jun. 1997.
MURTA, Antonio Marcos. Jornal. Recurso usado para ingressar no
mundo do saber e da cultura. Revista do Professor, n. 44, out./dez.
1995.
PANITZ, Synthia. Fantoches. Procedimentos para confecção e manejo
dos personagens. Revista do Professor, n. 49, jan./mar. 1997.
RAMOS, Ana Isabel Lima; HORN, Maria da Graça Souza. Resgatando a
identidade e a auto-estima. Revista do Professor, n. 55, jul./set. 1998.
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Africanidades. Como valorizar
as raízes afro nas
Procedimentos didático-pedagógicos e
a conquista de novos comportamentos
Véra Neusa Lopes
Professora e Técnica em Educação do Estado do Rio Grande do Sul.
Bacharel e licenciada em Ciências Sociais, com especialização em
Planejamento da Educação.
Assessora dos Agentes de Pastoral Negros/Rio Grande do Sul,
para Assuntos de Planejamento na Área da Educação.
Considerações iniciais
A educação escolar, de caráter obrigatório, prevista nas leis de ensino
vigentes, deve:
a) caracterizar-se como processo de desenvolvimento do indivíduo
– dinâmico, em permanente transformação e atualização – identificando,
portanto, um modelo educacional não fechado, receptivo às mudanças que
ocorrem na sociedade e que, conseqüentemente, se refletem na escola (micro-
sistema) e nela interferem;
b) propor o conhecimento como processo de aproximações e produto
de construções sucessivas, a partir da realidade, como resultado do
diálogo permanente estabelecido entre os sujeitos, em razão do objeto de
aprendizagem, numa ação contínua de troca e ampliação dos saberes. Isto
significa que não há conhecimento acabado, pronto e que sempre, ao longo
da vida, da qual o tempo escolar é apenas um dos segmentos, o homem tem
oportunidades variadas de realizar aprendizagens que se expandem e que
se completam, tendo o real como base a partir do qual as aprendizagens
acontecem e o diálogo como estratégia principal de sustentação dessas
aprendizagens;
c) preocupar-se em colocar o professor na obrigação de romper com o
papel que, tradicionalmente, tem assumido – de reprodutor de conhecimento
– levando-o a uma nova postura de agilizador da produção de conhecimento
em parceria com seus alunos e a comunidade, na construção coletiva do
saber, o que se traduz pelo processo de ajuda mútua que deve estabelecer-se
entre professor e aluno;
d) entender e colocar o aluno como centro do processo educativo,
transformando-o, efetivamente, em sujeito do conhecimento construído/
produzido, sendo aquele que, com o apoio do professor, aporta novos
saberes aos que já detém, invalidando a idéia de que o aluno aprende porque
o professor ensina.
Considerando o modelo de educação que ora é proposto em âmbito
nacional, essa nova ordem pedagógica coloca a problematização como a
forma adequada de abordagem indispensável para que se construam efetivos
conhecimentos escolares, a partir do estabelecimento de relação crítica entre
as realidades – presente/presente, presente/passado – 3e expectativas de
futuro, com a possibilidade de, usando a criatividade, antever alternativas
de soluções para problemas existentes, como por exemplo, os de racismo,
preconceito e discriminação racial, realidades em nosso meio.
Procedimentos de pesquisa, em nível escolar, são relevantes para o melhor
conhecimento da realidade, embasando medidas e ações que não perpetuem
o “status quo”. Tais procedimentos devem ser utilizados desde os primeiros
anos escolares, associados a outros que vão permitindo a professor e alunos
o alargamento de seus horizontes culturais e, por conseqüência, uma nova
visão de mundo em que todos perdem com á prática do racismo, sentimentos
de preconceito e ações de discriminação racial.
Um olhar atento sobre a realidade do povo brasileiro mostra uma
sociedade multirracial e pluri-étnica que faz de conta que o racismo, o
preconceito e a discriminação não existem. No entanto, afloram a todo
momento, ora de modo velado, ora escancarado, e estão presentes na vida
diária.
Por outro lado, a educação escolar está profundamente comprometida
com um projeto coletivo de mudanças sociais, independentemente da
diversificação cultural dos vários grupos étnicos que compõem a sociedade,
considerando que as diferenças culturais e étnicas são enriquecedoras na
conformação e organização do tecido social.
Então, para que esse compromisso se efetive é fundamental que,
trabalhando com a realidade, num diálogo permanente, numa situação de
aprendizagem contextualizada, usando procedimentos adequados, o aluno se
descubra membro atuante dessa sociedade, na qual pode e deve ser capaz de
interferir e promover modificações que conduzam a um clima de verdadeira
cidadania e democracia.
É preciso insistir sempre que a sociedade brasileira é preconceituosa e
discriminadora em relação à sua população. Em decorrência, o modelo de
educação não tem sido inclusivo, ainda quando permita a entrada de todos na
escola. Todos entram, ou a maioria entra, mas nem todos saem devidamente
escolarizados, aptos a enfrentar a vida como verdadeiros cidadãos. A
instituição escolar precisa desenvolver programas que, reconhecendo as
diferenças e respeitando-as, promovam a igualdade de oportunidades para
todos, o que se traduz pela oferta de escola de qualidade.
Os negros, ao longo da história do Brasil, têm sido, juntamente com os
índios, os mais discriminados. Essa questão deve ser abordada na escola,
incluída objetivamente no currículo, de tal forma que o aluno possa
identificar os casos, combatê-los, buscar resolvê-los, fazendo com que todos
sejam cidadãos em igualdade de condições, a despeito das diferenças e
especificidades que possam existir.
Forçoso é reconhecer, porém, que muitos professores não sabem como
proceder. É preciso ajudá-los, pondo ao seu alcance pistas pedagógicas
que coloquem professor e alunos frente a frente com novos desafios de
aprendizagem.
O combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação, em nível
escolar, deve tomar as mais diferentes formas de valorização da pessoa
humana, povos e nações, valorização que se alcança quando descobrimos
que as pessoas, mesmo com suas dessemelhanças, ainda são iguais entre si
e iguais a nós, com direito de acesso aos bens e serviços de que a sociedade
dispõe, de usufrui-los, criar outros, bem como de exercer seus deveres em
benefício próprio e dos demais.
O esforço a ser desenvolvido, a partir desta proposta que aqui fazemos,
deve extrapolar as fronteiras da sala de aula, derramar-se por sobre a escola
e atingir a comunidade em torno dela, permitindo a todos os envolvidos
novos comportamentos compatíveis com a conquista da cidadania numa
sociedade verdadeiramente democrática.
O desafio está posto. Mãos à obra em busca de soluções!
Racismo, preconceito e discriminação: contrapontos da cidadania
Construir uma nação livre, soberana e solidária, onde o exercício da
cidadania não se constitua como privilégio de uns poucos, mas direito de
todos, deve ser a grande meta a ser perseguida por todos segmentos sociais.
As pessoas não herdam, geneticamente, idéias de racismo, sentimentos
de preconceito e modos de exercitar a discriminação, antes os desenvolvem
com seus pares, na família, no trabalho, no grupo religioso, na escola.
Da mesma forma, podem aprender a ser ou tornar-se preconceituosos e
discriminadores em relação a povos e nações. Para Valente:
a) preconceito racial é idéia preconcebida suspeita de intolerância e aversão
de uma raça em relação a outra, sem razão objetiva ou refletida. Normalmente,
o preconceito vem acompanhado de uma atitude discriminatória;
b) discriminação racial é atitude ou ação de distinguir, separar as raças,
tendo por base idéias preconceituosas.
O Programa Nacional de Direitos Humanos considera o preconceito
como atitude, fenômeno intergrupal. dirigido a pessoas ou grupos de pessoas;
é predisposição negativa contra alguém; algo sempre ruim: predisposição
negativa, hostil, frente a outro ser humano; desvalorização do outro como
pessoa, considerado indigno de convivência no mesmo espaço, excluído
moralmente.
A discriminação supervaloriza determinadas culturas, dá ao dominador
a idéia de que é o melhor e desenvolve no discriminado o sentimento
de menos-valia. Permite que a sociedade seja considerada sob duas óticas
distintas e divergentes:
. a do discriminador, que manda e se considera o mais capaz, o mais
culto, o dono do mundo e das pessoas, que sempre estabelece as regras do
jogo que lhe interessa, que mantém sua auto-estima em alta às custas do
outrem.
. a do discriminado, que fica à mercê das decisões do discriminador, o
qual tenta organizar a vida do grupo social em função de seus interesses e
privilégios; que tem de lutar bravamente para elevar sua auto-estima, que
tem de construir sua identidade a duras penas.
A escola, como parte integrante dessa sociedade que se sabe preconceituosa
e discriminadora, mas que reconhece que é hora de mudar, está comprometida
com essa necessidade de mudança e precisa ser um espaço de aprendizagem
onde as transformações devem começar a ocorrer de modo planejado e
realizado coletivamente por todos os envolvidos, de modo consciente.
Professor e alunos devem organizar-se em comunidades de aprendizagem,
onde cada um chegue com seus saberes e juntos vão construir novos
conhecimentos num processo de trocas constantes, desmistificando
situações de racismo, preconceito e discriminação arraigados nos grupos
sociais e nas pessoas individualmente. Nesse aprender coletivo, professor e
alunos acabam por enriquecer o processo educativo para ambos os sujeitos
da aprendizagem. Especialmente quando se trata de racismo, preconceito e
discriminação, o investigar e o aprender juntos garantem aprendizagens de
melhor qualidade, porque ruídas coletivamente.
A educação escolar deve ajudar professor e alunos a compreenderem que
a diferença entre pessoas, povos e nações é saudável e enriquecedora; que
é preciso valorizá-la para garantir a democracia que, entre outros, significa
respeito pelas pessoas e nações tais como são, com suas características
próprias e individualizadoras; que buscar soluções e fazê-las vigorar é uma
questão de direitos humanos e cidadania.
Aprendendo a se ver, a ver o seu entorno (família, amigos, comunidade
imediata) de modo objetivo e crítico, a comparar todos elementos com os de
outros tempos e lugares, a criança desenvolve comportamentos adequados
para viver numa sociedade democrática.
A proposta didático-pedagógica apresentada, com algumas pistas para
o professor, leva em conta esses contrapontos da cidadania – o racismo, o
preconceito e a discriminação – e destaca sempre que:
a) quem tem idéias preconceituosas e discrimina – menospreza ou
despreza outras pessoas, grupos sociais, povos ou nações; desrespeita aquele
ou aquilo que considera diferente e, por isso, inferior; domina, subjuga
(pois assume o papel de amo e senhor em relação ao outro), pensa deter
o poder, gera conflito, é intolerante, tem mania de superioridade, mesmo
quando não é o melhor; pensa que os demais são inferiores e devem ser seus
subalternos; escraviza; induz o outro a ter baixa auto-estima.
b) quem aprende a não prejulgar e a não discriminar – respeita as
diferenças entre pessoas, povos e nações, busca o equilíbrio nos grupos a
que pertence, reconhece que a vida só é possível porque pessoas, povos e
nações são interdependentes; tem auto
estima em alta; exercita o bem-querer em relação aos outros (pessoas,
povos e nações).
A proposta pedagógica deve voltar-se, assim, para um trabalho continuado
de valorização das pessoas, povos e nações, num combate permanente às
idéias preconcebidas e às situações de racismo e discriminação com que nos
defrontamos no dia-a-dia.
Não esquecer dos objetivos
Quando a finalidade é construir a cidadania numa sociedade pluriétnica
e pluricultural. como é o caso da sociedade brasileira, é preciso que se tenha
presente um elenco de objetivos com os quais se deve trabalhar. Por exemplo,
os Parâmetros Curriculares Nacionais constituem, hoje, uma referência
que nenhum professor pode desconhecer. A seguir, estão sugeridos alguns
objetivos que podem nortear o trabalho a ser realizado. Outros poderão ser
buscados e selecionados.
Como objetivos do ensino fundamental, de caráter mais geral, podemos
destacar:
• Compreender a cidadania como exercício de direitos e deveres políticos,
civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade,
cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo
para si o mesmo respeito.
• Posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes
situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos
e de tomar decisões coletivas.
• Conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais,
materiais e culturais como meio para construir progressivamente a
noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência
no país.
• Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural
brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos, e
nações, posicionando-se contra qualquer discriminação, baseada em
diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou
outras características individuais ou sociais.
• Questionar a realidade, formulando-se problemas e tratando de
resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a
intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos
e verificando sua adequação.
Contidos nos objetivos do ensino fundamental estão os objetivos de
ética, também propostos pelo PCN, relevantes na medida em que o racismo,
preconceito e discriminação têm a ver com valores e atitudes do homem em
suas relações quotidianas com os outros homens. Sugerimos os que seguem,
podendo o professor selecionar outros:
• Compreender o conceito de justiça baseado na eqüidade e sensibilizar-
se pela necessidade da construção de uma sociedade justa.
• Adotar atitudes de respeito pelas diferenças entre as pessoas, respeito
esse necessário ao convívio numa sociedade democrática e pluralista.
• Compreender a vida escolar como participação no espaço público,
utilizando e aplicando conhecimentos adquiridos na construção de
uma sociedade democrática e solidária.
• Valorizar e empregar o diálogo como forma de esclarecer conflitos e
tomar decisões coletivas.
• Construir uma imagem positiva de si, o respeito próprio traduzido
pela confiança em sua capacidade de escolher e realizar seu próprio
projeto de vida e pela legitimação das normas morais que garantam, a
todos, essa realização.
• Assumir posições segundo seu próprio juízo de valor, considerando
diferentes pontos de vista e aspectos de cada situação.
Cabe ao professor selecionar e retirar do projeto pedagógico em
desenvolvimento na escola aqueles objetivos que digam respeito à cidadania
e à democracia e permitam ao aluno um trabalho continuado contra o
racismo, o preconceito e a discriminação.
Definidos a partir do projeto pedagógico e previstos nos planos de curso,
os objetivos de ensino deverão expressar os conceitos, os procedimentos,
as atitudes e os valores a serem construídos em sala de aula por alunos e
professores.
Procedimentos didático-pedagógicos
Por fim, chegamos à proposta que deve ser lida e entendida como um
conjunto de pistas para ajudar o professor na árdua tarefa de trabalhar com
seus alunos questões de racismo, preconceito e discriminação. Não pretende
colocar o professor numa camisa-de-força, apenas ajudá-lo a encontrar seus
próprios caminhos, em que terá como parceiros seus alunos.
Para facilitar, apresentamos um cenário: escola de 1a à 4a série, situada em
uma comunidade na periferia de uma cidade de pequeno porte; Classe de 2a série
ou 1a ciclo do ensino fundamental, com 30 alunos, entre 7 e 10 anos de idade;
crianças brancas de origem italiana, outras de origem alemã, alguns negros e
uns pouco descendentes de japoneses; professora negra (poderia ser de qualquer
outra etnia); quando se desentendem, é comum que sejam ouvidas expressões
como negro, saroba, japa, alemão batata, gringo, sendo que os atributos que
acompanham a expressão negro são sempre os mais ofensivos.
O que poderá ser feito?
• Criar situações que despertem o interesse das crianças para a questão
de semelhanças e diferenças entre os componentes da classe, incluindo
a professora. Exemplo: reunir as crianças em roda para conversarem
sobre cada um, explorando perguntas tais como “Quem sou?” e
“Como sou?” Deixar que uma criança comece ou, se for muito difícil,
começar pela professora que dará seu endereço, idade, filiação e se
apresentará com suas características físicas, gostos, preferências e usar,
se for possível, com naturalidade a expressão “sou negra”, se for o caso,
ou “sou árabe”, ou “sou alemã”, ou “sou índia”, ou “sou nissei”, ou
“sou sansei”. Observar a reação das crianças; não fazer comentários.
Fazer com que todos se apresentem.
• Se for necessário, desenvolver essa conversação por vários dias, de
modo que todos tenham a oportunidade de falar. Exercitar com os
alunos a habilidade de falar para um grupo e de ouvir os outros.
• Conversar com as crianças sobre o fato de todos serem brasileiros e
estabelecer com elas a diferença entre descendência e procedência.
• Pedir a ajuda dos pais, se for o caso, para que as crianças possam fazer
um retrato falado de si mesmos. Envolver os pais nas atividades, se
julgar oportuno e conveniente.
• Propor que as crianças, aos pares, se observem e expressem oralmente
como vêem o seu parceiro. Descrever como vêem a professora.
Comentar as verbalizações.
• Pedir às crianças que tragam para sala de aula uma fotografia recente.
Tirar uma fotografia de toda a turma. Observar com as crianças as
fotos isoladamente e a foto coletiva. Registrar as observações. Examinar
fotos mais antigas e registrar as observações.
• Verificar a existência de algumas diferenças e semelhanças constatadas.
Registrar as descobertas em uma folha de papel de embrulho, que
poderá ir sendo usada ao longo do trabalho. Por exemplo, algumas
diferenças: alguns são meninos, outras são meninas; nem todos têm
a mesma altura; todos têm nome e sobrenomes diferentes; uns são
magros, outros são gordos, uns têm a cor da pele bem clara, outros têm
a cor da pele mais escura; uns são brancos, de origem italiana, outros
são brancos de origem alemã, outros são de origem japonesa, outros
são de origem afro-brasileira. Existem semelhanças como: todos têm
entre 7 e 10 anos, todos moram no mesmo bairro, todos são brasileiros,
embora as origens possam ser diferentes; todos são saudáveis.
• Analisar com a classe os dados colhidos. Ajudar os alunos a observar
que apresentam diferenças e semelhanças, entre si e com a professora.
Observar, por exemplo, que a cor da pele não serve para definir quem
é branco ou não branco, porque há negros que têm a pele branca, há
descendentes de japoneses que também têm a pele bem clara; que se
vestem de modo diferente e podem ter hábitos alimentares e tradições
diferentes por causa de sua etnia ou de sua procedência.
• Trabalhar com as crianças a questão dos direitos humanos e dos direitos
da criança. Escolher, com elas, textos, poesias e canções que falem desses
direitos. Decodificar as mensagens. Dramatizar. Cantar. Conhecer a
vida dos autores. Buscar informações na cultura popular. Trabalhar
com autores negros brasileiros da música popular brasileira.
• Se possível, organizar visitas a instituições culturais, museus, casas de
cultura, existentes na comunidade ou na cidade, para aprender mais
sobre cultura, diversificação cultural, etnias formadoras da sociedade
brasileira.
• Explorar as diferentes culinárias e outras manifestações culturais
existentes, preservadas pela comunidade. Pesquisar, na comunidade,
possíveis traços culturais de outros grupos étnicos, além dos negros.
• Destacar a questão do negro e levar a criança a observar se há, na
sala de aula, meninas e/ou meninos que usam penteados afros. Levar
as crianças a observar como é difícil e demorado fazer um penteado
afro nas mulheres. Recortar em jornais e revistas ilustrações de pessoas
que estão usando um desses penteados. Expor. Trazer para sala de
aula ilustrações de artistas, como Rugendas e Debret, que, já na época
colonial, mostravam como eram os penteados dos negros no Brasil.
Comparar com os penteados atuais (Figuras 1 e 2).
Figuras 1: Debret – Escravos de diferentes nações.
Figura 2: Debret – Negros de diferentes nações.
• Planejar com as crianças a busca de mais informações sobre os negros
brasileiros. Organizar na sala de aula cantinhos das surpresas, onde
poderão ser expostos reálias, documentos, ilustrações, vestimentas.
Usar a entrevista como recurso para descobrir mais sobre o assunto
em pauta. Descobrir, na comunidade, pessoas negras que tenham
algo interessante para contar, permitindo reconstituir a história da
localidade.
• Comparar, com as crianças, as formas de vida dos negros da comunidade
onde está a escola com o modo de vida dos escravos. Novamente, valer-
se de ilustrações de Rugendas e Debret (Figuras 3, 4, e 5). Recriar, com
as crianças, a partir dos materiais a que tiverem acesso, a representação
das idéias trabalhadas.
Figura 3: Rugendas – Negros serradores de tábuas
Figura 4: Debret – Negro vendedor de carvão e vendedoras de milho
Figura 5: Debret – Vendedores de capim e leite
• Localizar, com o auxílio de recursos audiovisuais disponíveis, os
pontos de onde vieram os negros. Refazer, então, as rotas seguidas.
Localizar os pontos de entrada dos negros no Brasil. . Levantar alguns
dados dos dias atuais e verificar semelhanças e diferenças de modos de
vida dos negros. Observar, com as crianças, que a África é um grande
continente, formado por muitas nações. Descobrir de quais nações
vieram os negros que chegaram ao Brasil.
• Pesquisar, em conjunto com as crianças, sobre hábitos e costumes que
os brasileiros têm e que são de origem africana. Levantar o vocabulário
de origem africana.
• Questionar com as crianças se elas conhecem alguém que não gosta de
outras pessoas porque são negras, são pobres, são “polacos”, são judeus
ou são ciganos, que não gostam de índios porque são “preguiçosos”.
O que elas pensam disso? O que podem e querem fazer para que isso
não aconteça em sua classe, em sua escola, em suas famílias?
• Encorajar os alunos a que expressem seus sentimentos de diferentes
formas verbais e não verbais. Conversar sobre o significado de cada um
deles e os possíveis motivos pelos quais existem. Usar a dramatização
como forma de expressão.
• Utilizar diferentes formas de comunicação verbal e não verbal para
apresentar os trabalhos realizados e relativos às questões de preconceito
e discriminação raciais e étnico-culturais.
• Produzir textos coletivos, abordando questões de racismo, preconceito
e discriminação.
• Criar espaços, no âmbito da escola, para que os alunos possam
apresentar jornal falado, jornal mural, dramatizações cujo conteúdo
trate da diversificação étnica e cultural existente no Brasil e do papel
que o negro tem desempenhado na formação da sociedade brasileira.
• Criar situações em que as crianças possam imaginar como será o
futuro se nada for feito para eliminar o racismo, o preconceito e a
discriminação. Representar esse futuro.
• Propor às crianças que elaborem um documento, onde expressem as
ações que podem realizar, para que não haja mais racismo, preconceito
e discriminação na escola, entre seus amigos, na comunidade, nas
famílias, assumindo responsabilidades no cumprimento dos direitos e
deveres de cada um como cidadãos.
• Criar condições para que as crianças desenvolvam o sentido do nós, de
pertencer a um grupo, com direitos e deveres, com objetivos comuns,
mantendo, contudo, sua individualidade e diferenciação cultural,
étnica e de gênero.
• Pesquisar sobre artistas que tenham a ver com: diferenciação cultural,
cultura nacional, preconceito, discriminação. Recriar as obras. Analisar
com as crianças, por exemplo, algumas obras de Aleijadinho, danças
de origem africana ainda existentes, manifestações culturais como os
maçambiques, em Osório/RS.
• Visitar museus e casas de cultura, se possível, como oportunidade
para aprender mais sobre cultura, democracia, cidadania e etnias que
formaram a sociedade brasileira.
• Pesquisar, na comunidade, possíveis traços culturais de outros grupos
étnicos, além dos deixados pelos negros. Pedir a colaboração de pessoas
entendidas para explicá-los à classe. Descobrir modos de preservar esses
traços. Descobrir na comunidade pessoas negras que tenham algo a
contar.
• Produzir textos coletivos, abordando questões de preconceito e
discriminação, e organizar coletâneas, colocando-as à disposição da
comunidade escolar.
• Observar o grupo para perceber os sentimentos de cada criança em
relação à diferenciação étnica, cultural, de gênero, etc., existentes na
sala de aula.
• Fazer perguntas ao grupo sobre o que sabem sobre usos e costumes, a
língua e as artes dos povos representados na sala de aula. Mapear com
as crianças a situação detectada. Levantar informações sobre a cultura
africana.
• Listar os sentimentos que os componentes do grupo manifestam
sobre as questões em estudo. Por exemplo: felizes, infelizes, surpresos,
curiosos, chocados, envergonhados, orgulhosos. Analisar com o grupo.
Valorizar os positivos. Buscar formas de minimizar os negativos.
• Pesquisar situações de preconceito ou discriminação, bem como de
valorização das pessoas, apresentadas pelos meios de comunicação.
Analisar com as crianças, identificando os pontos negativos e os
positivos. Questionar em grupo o que poderá ser feito para mudar a
situação. Criar faixas, cartazes com manchetes, destacando os aspectos
positivos.
• Selecionar um problema, dentre os levantados, e elencar possíveis
soluções. Considerar para cada solução quais serão as conseqüências
esperadas.
• Repensar, em grupo, novas soluções, quando a adotada não estiver
apresentando resultados desejáveis.
Este elenco de procedimentos e outros tantos que o professor, com
certeza, descobrirá, podem ser desenvolvidos em inúmeras situações ao
longo do ano letivo, quando o foco poderá ser outra etnia.
O Brasil precisa de professores dispostos a fazer a revolução das pedagogias.
Cada um de nós está convocado a entrar nesse grupo.
REFER ̄NCIAS BIBLIOGR ̆FICAS
AZEVÊDO, Eliane. Raça. Conceito e padrão. São Paulo: Ática,1990.
BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação
Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros
curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997.
________. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas
transversais. Brasília: MEC/ SEF, 1997.
BRASIL, Ministério da Justiça. Secretaria Nacional dos Direitos Humanos.
Suplemento Especial Direitos Humanos. Encarte do Jornal Radcal. Fundação
Atos Bulcão, 1998.
CADERNOS CEDES. Centro de Estudos Educação e Sociedade. Educação
e diferenciação cultural. Índios e negros, n. 32. Campinas: Papiros, 1993.
CLABBY John; DE CLAIRE, Joan. Inteligência emocional. E a arte de
educar nossos filhos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
FLEMING, Robert (org.). Currículo moderno. Um planejamento dinâmico
das mais avançadas técnicas de ensino. Rio de Janeiro: Lidador, 1970.
MORAIS, Regis (org.). Sala de aula: que espaço é esse. Campinas: Papiros,
1986.
MUNANGA, Kabengele. Negritude. Usos e sentidos. São Paulo: Ática,
1996.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Governo Fernando Henrique.
Construindo a democracia racial. Brasília: Presidência da República, 1998.
SHAPIRO, Lawrence E. Inteligência emocional. Uma nova vida para seu
filho. Rio de Janeiro: Campus, 1998.
VALENTE, Ana Lúcia E. F. Ser negro no Brasil hoje. São Paulo: Moderna,
1998.
ANEXO
Subsídios de apoio
O professor encontrará nas matérias, a seguir indicadas, informações
relacionadas ou diretamente pertinentes ao tema desenvolvido, que
poderão indicar pistas para enriquecimento ou aperfeiçoamento do
trabalho pretendido. São artigos da Revista do Professor, com divulgação
nacional e, praticamente, presente em todos os municípios brasileiros.
ANDRADE, Maria Márcia Brito. Conhecendo os heróis e a luta do
negro no Brasil. Revista do Professor, n. 41, jan./mar. 1995.
________. Povos indígenas. Tradições, usos e costumes merecem ser
resgatados na escola. Revista do Professor, n. 46, abr./jun. 1996.
________. Escola promovendo resgate de cultura popular. Revista do
Professor, n. 49, jan./mar. 1997.
________. Dramatização e teatro a partir da sala de aula. Revista do
Professor, n. 51, jul./set. 1997.
BRITTES, Alexandre Alves. Jornal Falado. Recurso utiliza diferentes
meios e instrumentos de comunicação. Revista do Professor, n. 56, out./
dez. 1998
CINEL, Nora Cecília Bocaccio. Memória. Funções no processo de
aprendizagem. Revista do Professor, n. 32, out./dez. 1992.
ENTRELAÇANDO vida e arte no lugar onde vivemos. Cotidiano do
aluno torna-se mais significativo. Revista do Professor, n. 50. abr./jun.
1997.
FERREIRA, Maria Lúcia Canto. Professores promovem integração pelo
teatro. Revista do Professor, n. 42, abr./jun. 1995.
________. Teatro na escola. Uso dos jogos dramáticos gera efeitos
benéficos. Revista do Professor, n. 54, abr./jun. 1998.
FISCHER, Beatriz T. Daudt. Desafio: ensinando a partir da realidade.
Revista do Professor, n. 32, out./dez. 1992.
202
Racismo, preconceito e discriminação
GRINSCHPUN, Iafa. Autonomia. Processo requer relação de respeito e
afeto. Revista do Professor, n. 32, out./dez. 1992.
HEMIELEWSKI, Ada Maria. Trabalhar poesia é aprender a olhar e a
sentir o mundo. Relação que se estabelece com a criança é lúdica e
emotiva. Revista do Professor, n. 27, jan./mar. 1994.
LOPES, Jader Janer Moreira. Aprendendo estudos sociais na cozinha.
Revista do Professor, n. 48, out./dez. 1996.
LOPES, Verá Neusa. 13 de maio. Centrando o negro brasileiro como
sujeito da História. Revista do Professor, n. 53, jan./mar. 1998.
MACHADO, Raul José Moraes. Linha operacional para o ensino
da Língua Portuguesa. Objetivo é desenvolver as potencialidades de
comunicação. Revista do Professor, n. 35, jul./set. 1993.
________. Clube de imprensa. Atividade interdisciplinar que envolver
professores e alunos. Revista do Professor, n. 36. out./dez. 1993.
MÁRSICO, Leda Osório. Bandinha rítmica e a magia de fazer música.
Revista do Professor, n. 29, jan/mar. 1991.
MAZZOCHI, Luiz Fernando. Obras de arte são recriadas na pré-escola.
Revista do Professor, n. 50, abr./jun. 1997.
MURTA, Antonio Marcos. Jornal. Recurso usado para ingressar no
mundo do saber e da cultura. Revista do Professor, n. 44, out./dez.
1995.
PANITZ, Synthia. Fantoches. Procedimentos para confecção e manejo
dos personagens. Revista do Professor, n. 49, jan./mar. 1997.
RAMOS, Ana Isabel Lima; HORN, Maria da Graça Souza. Resgatando a
identidade e a auto-estima. Revista do Professor, n. 55, jul./set. 1998.
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Africanidades. Como valorizar
as raízes afro nas
propostas pedagógicas. Revista do Professo, n. 44,
out./dez. 1995.
TAVARES, Cristiane Fernandes. Curiosidade: uma aliada na
aprendizagem. Revista do Professor, n. 45, jan./mar. 1996.
203
Véra Neusa Lopes
TORRES, Adriana Meyer. Resgatando na escola o valor do desenho.
Criatividade é o ponto de partida. Revista do Professor, n. 35, jul./set.
1993.
VIAJANDO e aprendendo através do Túnel do Tempo. Revista do
Professor, n. 52, out./dez. 1997.
VILARINHO, Maria; MEDEIROS, Olga Helena Silva. Despertando o
interesse do aluno pela História. Revista do Professor, n. 34, abr./jun.
1993.
VILHENA, Sueli L. Fonseca de. Criando espaço para a poesia na escola.
Fantasia ajuda a despertar sensibilidade. Revista do Professor, n. 33,
jan./mar. 1993.
out./dez. 1995.
TAVARES, Cristiane Fernandes. Curiosidade: uma aliada na
aprendizagem. Revista do Professor, n. 45, jan./mar. 1996.
203
Véra Neusa Lopes
TORRES, Adriana Meyer. Resgatando na escola o valor do desenho.
Criatividade é o ponto de partida. Revista do Professor, n. 35, jul./set.
1993.
VIAJANDO e aprendendo através do Túnel do Tempo. Revista do
Professor, n. 52, out./dez. 1997.
VILARINHO, Maria; MEDEIROS, Olga Helena Silva. Despertando o
interesse do aluno pela História. Revista do Professor, n. 34, abr./jun.
1993.
VILHENA, Sueli L. Fonseca de. Criando espaço para a poesia na escola.
Fantasia ajuda a despertar sensibilidade. Revista do Professor, n. 33,
jan./mar. 1993.
quinta-feira, 8 de agosto de 2013
EDUCAÇÃO E RELAÇÕES RACIAIS
Professora: Meri T.
Mackowiak Considerações Gerais
Para que a escola
consiga avançar na relação entre saberes escolares, realidade
social, diversidade étnico- cultural é preciso que os educadores
compreendam que o processo educacional também é formado por
dimensões como a ética, as diferentes identidades, a diversidade, a
sexualidade, a cultura, as relações raciais, entre outras. É
preciso que a escola se conscientize cada vez mais de que ela existe
para atender a sociedade na qual está inserida e não aos órgãos
governamentais ou aos desejos dos educadores.
Uma melhor
compreensão sobre o que é racismo e seus desdobramentos poderia ser
um dos caminhos para se pensar estratégias de combate ao racismo na
educação. É necessário inserir a discussão sobre o tratamento
que a escola tem dado às relações raciais no interior desse
debate. É preciso abrir esse debate e tocar com força nessa questão
tão delicada. É preciso construir novas práticas. Realizar
discussões na escola que trabalhem temas como: a influência da
mídia, a religião, a cultura, a estética, a corporeidade, a
música, a arte, os movimentos culturais, na perspectiva afro-
brasileira.
E, por
último, penso que todo educador, ao trabalhar com questão racial,
deveria tomar conhecimento das lutas, demandas e conquistas do
Movimento Negro. Não podemos nos esquecer de que a inclusão da
temática racional na escola brasileira e o reconhecimento a sua
inclusão no currículo deve muito à atuação desse movimento.
Professora: Meri T.
Mackowiak
EDUCAÇÃO E RELAÇÕES RACIAIS:
REFLETINDO SOBRE ALGUMAS ESTRATÉGIAS DE ATUAÇÃO
Nilma Lino Gomes
Professora Assistente do Departamento de Administração Escolar
da Faculdade de Educação da UFMG.
Doutoranda em Antropologia Social/USP
Gostaria de iniciar esse artigo relembrando um documentário muito
interessante intitulado Olhos Azuis1, que vale a pena ser visto. Esse
documento relata a experiência da sra. Jane Eliot, professora e psicóloga
branca nos EUA, que organiza e desenvolve um workshop com pessoas
de diferentes grupos étnico/raciais para discutir sobre o racismo e seus
desdobramentos.
Mas por que uma mulher branca nos EUA, poderia se interessar em
desenvolver um trabalho como esse? De acordo com o documentário,
tudo começou quando essa professora ainda lecionava
para crianças numa cidade do interior. Um dia, ela se viu
questionada pelos alunos sobre os motivos que levaram
ao assassinato do líder negro Martin Luther King, em
1968, nos EUA. A partir dessa curiosidade das crianças
a professora se viu diante de um desafio: como explicar
uma questão tão complexa para seus alunos? Que recursos
ela poderia usar para tornar o assunto compreensível
para aquelas crianças? Ela se deu conta de que não havia
recursos didáticos para explicar aos alunos o que era
realmente o racismo. Assim, a professora concluiu que
só se as pessoas pudessem se colocar no lugar daqueles
que eram discriminados racialmente, é que elas poderiam
compreender o que era o racismo. Então, ela teve uma
idéia: realizou com os seus alunos uma dinâmica de
grupo em que, durante um dia letivo inteiro, as crianças
que tivessem olhos azuis, passariam por uma situação
de discriminação. Elas deveriam ser rejeitadas pelas
outras devido à cor dos seus olhos. Ter olhos azuis seria,
a partir daquele momento, um atributo merecedor de
desprezo. A escolha da cor dos olhos, uma característica
do fenótipo (assim como a cor da pele), foi a forma mais
próxima de fazer as crianças se aproximarem do drama
dos negros que sofrem a discriminação racial devido a
fatores históricos, culturais e também raciais. Nesse caso,
a cor da pele, o tipo de cabelo, o formato dos lábios, entre
outras características que remetem à herança africana,
são vistos pelo racista como marca de inferioridade. A
dinâmica foi explicada e negociada previamente com
as crianças, que aceitaram a proposta. Então, durante
esse dia, as crianças de olhos azuis foram rejeitadas por
seus colegas que não conversavam direito com elas, não
as respeitavam, não bebiam no mesmo bebedouro, em
suma, as discriminavam. A professora acompanhou toda
a experiência e fotografou as crianças antes e depois do
trabalho. Ao terminar a aula, a classe inteira se reuniu
para discutir sobre o que havia acontecido. Os alunos e
as alunas falaram sobre o que sentiram, principalmente,
os de olhos azuis. Os sentimentos giravam em tomo de
sensações como: impotência, raiva, vontade de vingança,
tristeza, ressentimento, inferioridade e incapacidade.
A professora discutiu com a turma sobre o que eles
tinham achado do comportamento adotado pelos
alunos que não tinham olhos azuis. Ele fazia sentido?
Unanimemente, a classe disse que não. Concluíram,
a partir daquela experiência, que não se deve julgar e
maltratar as pessoas simplesmente porque nasceram com
a cor dos olhos diferente umas das outras. A cor dos
olhos em nada interfere no caráter, na personalidade e
na capacidade das pessoas e nem deveria ser um critério
para que alguns grupos humanos fossem tratados de
maneira desigual em relação aos outros. Após uma longa
conversa com os alunos, analisando cada fato acontecido
durante aquele dia letivo, a professora pôde relacionar a
dinâmica realizada com a questão racial. Explicou para
a classe o sistema escravista, o racismo e a situação dos
negros norte-americanos. Explicou, também, a atuação
de Martin Luther King na luta pelos direitos civis, pela
superação do racismo e o tanto que ele e outros ativistas
negros incomodavam a ordem racista que imperava na
Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação
sociedade norte-americana da época. Assim, ela também
pôde explicar por que esse grande líder negro havia sido
assassinado.
Diferentemente do que se possa pensar, a ousadia e a coragem da
professora não lhe renderam louvores e reconhecimento por parte da escola
e da comunidade. Logo que souberam do acontecido, os pais se voltaram
contra a educadora e retiraram as crianças da sala dela, pois não queriam os
filhos estudando com uma “amiga de negros”. A represália ainda foi maior.
A comunidade desprezou os filhos dessa mulher, boicotou o restaurante da
sua família, a ponto de o estabelecimento ir à falência, fora outros tipos de
insultos. Tudo isso, ao invés de desanimar a referida professora só serviu
para estimulá-la ainda mais na luta contra a ignorância e a hostilidade do
racismo, pois ela não queria, enquanto educadora, continuar contribuindo
para a formação de pessoas racistas. Assim, ela se enfronhou nas leituras
sobre as mais diferentes formas de racismo que existem no mundo, desde o
nazismo, o fascismo, o Apartheid, até os de tipo mais sutil. No decorrer dos
anos, a sua dinâmica foi se aperfeiçoando e, hoje, uma de suas atividades
profissionais tem sido a realização de workshop e dinâmicas de grupo que
possibilitem às pessoas vivenciar “na pele” o que é o racismo. É muito
interessante assistir ao documentário e à realização do workshop. Os
depoimentos dos negros, dos latinos e dos brancos que dele participam
são muito impressionantes. É muito interessante, também, ver as fotos das
crianças com as quais essa experiência se iniciou e ouvi-las hoje, depois
de adultas. Nos seus depoimentos, os ex-alunos, agora adultos, falam da
importância dessa experiência na sua vida e que a partir de então, eles se
construíram como pessoas que tentam desenvolver uma relação de respeito
com os negros e os outros segmentos discriminados.
Não quero estimular ninguém a desenvolver esse projeto sem o mínimo
de preparo, discernimento e entendimento sobre o tema. Todavia, quando
assisti ao filme, refleti sobre o quanto a discussão sobre a questão racial
está ligada a um terreno delicado: as nossas representações e os nossos
valores sobre o negro. O trabalho da professora norte-americana consiste
em colocar as pessoas que se inscrevem no seu workshop diante dos seus
próprios valores raciais, levando-as a questioná-los, a partir do momento em
que se encontram numa situação de discriminação semelhante àquela vivida
pelo outro, pelo diferente. Essas pessoas, por algumas horas, são obrigadas
a saírem do seu lugar, do seguro lugar ocupado pelo “nós” para estarem
no lugar do “outro”. E isso é muito complexo. Mexe com o que há de
mais íntimo nas pessoas e as questiona sobre o verdadeiro sentido dos seus
valores, dos seus julgamentos, dos seus preconceitos.
Penso que esse documentário deveria ser assistido pelos(as) professores(as).
Apesar de se referir à realidade dos EUA, ele toca em questões ligadas aos
preconceitos, às representações sobre o negro e às identidades, temáticas
que a escola, hoje, está cada vez mais desafiada a enfrentar e a tratar
pedagogicamente.
Dessa forma, o documentário serve para aguçar as nossas reflexões
sobre a realidade racial dos negros no Brasil. Ele também pode nos ajudar
a pensar o tratamento que a escola tem dado a essa questão. Como será que
nós, professores e professoras, temos trabalhado com a questão racial na
escola? Que atitudes tomamos frente às situações de discriminação racial no
interior da escola e da sala de aula? Até quando esperaremos uma situação
drástica de conflito racial ou enfrentamento para respondermos a essas
perguntas? Por que será que a questão racial ainda encontra tanta dificuldade
para entrar na escola e na formação do professorado brasileiro?
Ainda encontramos muitos(as) educadores(as) que pensam que discutir
sobre relações raciais não é tarefa da educação. É um dever dos militantes
políticos, dos sociólogos e antropólogos. Tal argumento demonstra uma
total incompreensão sobre a formação histórica e cultural da sociedade
brasileira. E, ainda mais, essa afirmação traz de maneira implícita a idéia de
que não é da competência da escola discutir sobre temáticas que fazem parte
do nosso complexo processo de formação humana. Demonstra, também, a
crença de que a função da escola está reduzida à transmissão dos conteúdos
historicamente acumulados, como se estes pudessem ser trabalhados de
maneira desvinculada da realidade social brasileira.
Não há como negar que a educação é um processo amplo e complexo
de construção de saberes culturais e sociais que fazem parte do acontecer
humano. Porém, não é contraditório que tantos educadores concordem
com essa afirmação e, ao mesmo tempo, neguem o papel da escola no trato
Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação
com a diversidade étnico-racial? Como podemos pensar a escola brasileira,
principalmente a pública, descolada das relações raciais que fazem parte da
construção histórica, cultural e social desse país? E como podemos pensar
as relações raciais fora do conjunto das relações sociais?
Para que a escola consiga avançar na relação entre saberes escolares/
realidade social/diversidade étnico-cultural é preciso que os(as) educadores(as)
compreendam que o processo educacional também é formado por dimensões
como a ética, as diferentes identidades, a diversidade, a sexualidade, a
cultura, as relações raciais, entre outras. E trabalhar com essas dimensões
não significa transformá-las em conteúdos escolares ou temas transversais,
mas ter a sensibilidade para perceber como esses processos constituintes da
nossa formação humana se manifestam na nossa vida e no próprio cotidiano
escolar. Dessa maneira, poderemos construir coletivamente novas formas de
convivência e de respeito entre professores, alunos e comunidade. É preciso
que a escola se conscientize cada vez mais de que ela existe para atender a
sociedade na qual está inserida e não aos órgãos governamentais ou aos
desejos dos educadores.
Contudo, não podemos generalizar e dizer que todos(as) os(as)
educadores(as) sofrem de apatia e passividade. Durante as palestras e debates
de que tenho participado nos últimos anos, tenho notado que, aos poucos,
vem crescendo o número de educadores(as) que desejam dar um tratamento
pedagógico à questão racial. Esse movimento tem impulsionado a escola
brasileira a pensar sobre a necessidade de se criar estratégias de combate ao
racismo na escola e de valorização da população negra na educação.
Porém, antes de pensarmos em quais estratégias poderemos adotar, é
importante que estejamos atentos ao seguinte ponto: se todos nós estamos
de acordo com a necessidade de se desenvolver estratégias de combate ao
racismo na escola (que é o objetivo desse livro), concordamos com o fato
de que o racismo existe na sociedade brasileira. E mais, concordamos que
racismo está presente na escola brasileira. Esse é um ponto importante porque
rompe com a hipocrisia da nossa sociedade diante da situação da população
negra e mestiça desse país e exige um posicionamento dos(as) educadores(as).
Essa constatação também contribui para desmascarar a 1mbigüidade do
racismo brasileiro que se manifesta através do histórico movimento de
afirmação/negação. No Brasil, o racismo ainda é insistentemente negado
no discurso do brasileiro, mas se mantém presente nos sistemas de valores
que regem o comportamento da nossa sociedade, expressando-se através das
mais diversas práticas sociais.2
E a escola? Ela manifesta essa ambigüidade? Sim, essa ambigüidade
também pode ser vista no discurso e na prática dos(as) professores(as). É
preciso enfrentar essa questão. Como nos diz PEREIRA (1996)3, ignorar essa
ambigüidade não nos levará a lugar algum. É preciso combatê-la.
Uma melhor compreensão sobre o que é o racismo e seus desdobramentos
poderia ser um dos caminhos para se pensar estratégias de combate ao racismo
na educação4. Muitos professores ainda pensam que o racismo se restringe à
realidade dos EUA, ao nazismo de Hitler e ao extinto regime do Apartheid
na África do Sul. Esse tipo de argumento é muito usado para explicar a
suposta inexistência do racismo no Brasil e ajuda a reforçar a ambigüidade
do racismo brasileiro. Além de demonstrar um profundo desconhecimento
histórico e conceptual sobre a questão, esse argumento nos revela os efeitos
do mito da democracia racial na sociedade brasileira, esse tão falado mito
que nos leva a pensar que vivemos em um paraíso racial.
O entendimento conceptual sobre o que é racismo, discriminação racial
e preconceito, poderia ajudar os(as) educadores(as) a compreenderem a
especificidade do racismo brasileiro e auxiliá-los a identificar o que é uma
prática racista e quando esta acontece no interior da escola. Essa é uma
discussão que deveria fazer parte do processo de formação dos professores.
Essa idéia está muito bem trabalhada num artigo escrito pelo professor João Baptista Borges Pereira.
Seria muito bom consultar: PEREIRA, João Baptista Borges. “Racismo à Brasileira”. In: MUNANGA,
Kabengele (org.). Estratégias políticas de combate ao racismo. São Paulo: EDUSP, 1996, p.75-78.
Sobre essa questão pode-se sugerir algumas obras como: BENTO, Maria Aparecida
Silva. Cidadania em preto e branco: discutindo as relações raciais. São Paulo: Ática, 1998;
GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de perto. Belo Horizonte: Mazza Edições,
1995; GONÇALVES, Luiz A. Oliveira e GONÇALVES e SILVA, Petronilha Beatriz. Jogo
das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos. Belo Horizonte: Autêntica, 1998;
MUNANGA, Kabengele (Org.) Estratégias políticas
de combate ao racismo. São Paulo: EDUSP, 1996; QUEIROZ, Renato da Silva. Não vi e não gostei:
o fenômeno do preconceito, São Paulo: Moderna, 1996.
Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação
Porém, é necessário que, na educação, a discussão teórica e conceptual sobre
a questão racial esteja acompanhada da adoção de práticas concretas. Julgo
que seria interessante se pudéssemos construir experiências de formação
em que os professores pudessem vivenciar, analisar e propor estratégias de
intervenção que tenham a valorização da cultura negra e a eliminação de
práticas racistas como foco principal. Dessa forma, o entendimento dos
conceitos estaria associado às experiências concretas, possibilitando uma
mudança de valores. Por isso, o contato com a comunidade negra, com os
grupos culturais e religiosos que estão ao nosso redor é importante, pois
uma coisa é dizer, de longe, que se respeita o outro, e outra coisa é mostrar
esse respeito na convivência humana, é estar cara a cara com os limites que
o outro me impõe, é saber relacionar, negociar, resolver conflitos, mudar
valores.
E é justamente o campo dos valores que apresenta uma maior
complexidade, quando pensamos em estratégias de combate ao racismo e
de valorização da população negra na escola brasileira. Tocar no campo dos
valores, das identidades, mexe com questões delicadas e subjetivas e nos leva
a refletir sobre diversos temas presentes no campo educacional. Um deles se
refere à autonomia do professor.
Mas qual é a relação entre autonomia do professor e a questão racial?
Para responder a essa pergunta, gostaria que refletíssemos sobre quais são as
interpretações do professorado sobre a autonomia em sala de aula. Já ouvi
muitos(as) educadores(as) dizerem que a autonomia do docente significa a
liberdade de escolha para adotar uma determinada metodologia, discutir
ou não certas temáticas, usar da sua autoridade para com o aluno, discutir
política partidária no interior da escola, entre outros. Todos nós sabemos
que a autonomia não se reduz a isso. Porém, ao tratar da temática racial,
alguns docentes usam de uma compreensão deturpada de autonomia para
reproduzir e produzir práticas racistas.
Ao entrar nesse debate, estamos questionando a nossa atuação profissional
e a nossa postura ética diante da diversidade étnico-cultural e das suas
diferentes manifestações no interior da escola. Que tipo de profissionais
temos sido? A educação carece de princípios éticos que orientem a prática
pedagógica e a sua relação com a questão racial na escola e na sala de aula.
Isso não significa desrespeitar a autonomia do professor, mas entendê-la e,
muitas vezes, questioná-la. Significa perguntar até que ponto, em nome de
uma suposta autonomia, uma professora pode colocar uma criança negra
para dançar com um pau de vassoura durante uma festa junina porque
nenhum coleguinha queria dançar com um “negrinho”.5 Discutir essa
“autonomia” do professor representa, também, denunciar práticas em que
o (a) professor(a) estabelece que o castigo para os alunos “desobedientes”
será sentar ao lado do aluno negro da sala. Representa abrir um processo
jurídico contra uma professora que, devido a um desentendimento político
com uma colega, se julga no direito de entrar em sua sala de aula e xingá-la
e “negra suja”. A escola deve, por um acaso, em nome da “autonomia” de
cada docente, permitir e ser conivente com o (a) professor(a) que permite
que as meninas brancas chamem a colega negra de “negra do cabelo duro”
ou “cabelo de bombril”? Questiono, então: que autonomia é essa? Respondo:
autonomia não significa ser livre para fazer o que eu quero. É preciso que as
práticas pedagógicas sejam orientadas por princípios éticos que norteiem as
relações estabelecidas entre professores, pais e alunos no interior das escolas
brasileiras. E é necessário inserir a discussão sobre o tratamento que a escola
tem dado às relações raciais no interior desse debate.
Refletir sobre os valores que estão por detrás de práticas como as que
citamos anteriormente nos leva a pensar que não basta apenas lermos o
documento de “Plural idade Cultural”, ou analisarmos o material didático, ou
discutirmos sobre as questões curriculares presentes na escola se não tocarmos
de maneira séria no campo dos valores, das representações sobre o negro,
que professores(as) e alunos(as) negros, mestiços e brancos possuem. Esses
valores nunca estão sozinhos. Eles, na maioria das vezes, são acompanhados
de práticas que precisam ser revistas para construirmos princípios éticos e
realizarmos um trabalho sério e competente com a diversidade étnico-racial
na escola. É preciso abrir esse debate e tocar com força nessa questão tão
delicada. Caso contrário, continuaremos acreditando que a implementação
As situações apresentadas nesse artigo são verídicas, ocorrendo no interior de escolas
públicas municipais e estaduais de Belo Horizonte. Por uma questão de ética, não
mencionarei o nome das instituições onde ocorreram as práticas discriminatórias aqui
descritas.
Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação
de práticas anti-racistas no interior da escola só dependerá do maior acesso
à informação ou do processo ideológico de politização das consciências
dos docentes. Reafirmo que é preciso construir novas práticas. Julgo ser
necessário que os(as) educadores(as) se coloquem na fronteira desse debate
e que a cobrança de novas posturas diante da questão racial passe a ser uma
realidade, não só dos movimentos negros, mas também dos educadores,
dos sindicatos e dos centros de formação de professores. Quem sabe
assim poderemos partir para iniciativas concretas, desenvolvendo projetos
pedagógicos juntamente com a comunidade negra, com as ONG’s e com
os movimentos sociais. Assim, poderemos realizar discussões na escola que
trabalhem temas como: a influência da mídia, a religião, a cultura, a estética,
a corporeidade, a música, a arte, os movimentos culturais, na perspectiva
afro-brasileira. Essas e outras temáticas podem e devem ser realizadas ao
longo do processo escolar e não somente nas datas comemorativas, na
semana do folclore ou durante a semana da cultura.
Uma estratégia interessante e que poderá nos ajudar na mudança
de valores e práticas é conhecer outras experiências de intervenção bem
sucedidas no trato da questão racial. Posso citar, nas poucas páginas desse
artigo, a experiência do Núcleo de Estudos Negros – NEN, de Florianópolis.
Além de publicações e de folhetos informativos, esse grupo tem produzido
vídeos, participado e promovido debates com a presença de especialistas
na área, orientado projetos nas escolas, etc. A série “Pensamento Negro
em Educação” é uma publicação desse grupo quee deveria fazer parte da
biblioteca de todo(a) professor(a)6.
O Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê7 em Salvador é também uma
experiência que deve ser conhecida e que trabalha na fronteira da mudança de
valores e instauração de novas práticas. Esse projeto tem realizado trabalhos
Para melhor conhecer o trabalho do NEN: Núcleo de Estudos Negros - Rua Joana de
Gusmão, sala 303, CEP 88.010-420 - Centro - Florianópolis - SC - Tel: (048)224
0769, e-mail: nen@ced.ufsc.br.
Associação Cultural Ilê Aiyê surgiu há 22 anos a partir do bloco carnavalesco Ilê Aiyê.
O endereço para contato é: Rua do Curuzu, 233 - Liberdade - CEP.: 40.365-000 - Salvador
-Bahia - Telefax: (071)241-4969.
em parceria com escolas públicas, capacitando professores(as) e envolvendo
os alunos em projetos pedagógicos e oficinas, cuja temática racial é o objetivo
principal. Além desse projeto, o Ilê Aiyê mantém, desde 1988, a escola
comunitária de ensino fundamental Mãe Hilda, no bairro da Liberdade, cujo
projeto pedagógico tem como base a cultura e a história do povo negro no
Brasil. O Ilê ainda mantém uma escola de percussão, a Banda Erê, formada
por crianças da comunidade e por meninos de rua. Para quem quiser
acompanhar todos esses trabalhos, a Associação Cultural Ilê Aiyê publica
o Caderno de Educação do Ilê Aiyê, um material que pode ser adquirido e
utilizado pelas escolas e pelos centros de formação de professores.
As duas experiências acima citadas exemplificam práticas que têm sido
desenvolvidas no Brasil e que têm como enfoque o trabalho com educação
e relações raciais. Infelizmente, esses e outros trabalhos importantes ainda
não são conhecidos pelos educadores. Conhecê-los, visitá-los, solicitar
assessoria e adquirir o material, poderá ser uma importante estratégia a ser
desenvolvida pelas escolas. Assim, quem sabe, os professores deixarão de
perguntar o quê e como fazer, para se relacionarem com quem já tem feito
há muito tempo.
Não dá mais para dizer que as experiências não existem. Será que temos tido
oportunidade e/ou boa vontade de conhecê-las? Será que os órgãos oficiais,
os centros de formação de professores, as propostas inovadoras de educação,
têm tido o interesse de mapeá-las e divulgá-las? Pensar na inserção política e
pedagógica da questão racial nas escolas significa muito mais do que ler livros
e manuais informativos. Representa alterar os valores, a dinâmica, a lógica,
o tempo, o espaço, o ritmo e a estrutura das escolas. Significa dar subsídios
aos professores, colocá-los em contato com as discussões mais recentes sobre
os processos educativos, culturais, políticos. Mas, para que isso aconteça, não
basta somente desejarmos ardentemente ou reclamarmos cotidianamente de
que nenhuma iniciativa tem sido tomada. A escola e os educadores têm
que se mobilizar. Nós, os(as) professores(as), somos conhecidos como uma
categoria de lutas e de conquistas. Se reconhecemos que o trato pedagógico
da diversidade é um direito de do cidadão pertencente a qualquer grupo
étnico-racial e um interesse dos educadores, que têm compromisso com a
extensão da cidadania e democracia, pergunto: que movimento temos feito
em direção a um trabalho pedagógico com a questão racial? Para se realizar
Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação
mudanças é preciso que haja movimento. E movimento não combina com
ações isoladas. É preciso que nos organizemos enquanto grupo.
Uma outra proposta de trabalho com a diversidade étnico-racial e que
pode ser considerada como uma estratégia de combate ao racismo no interior
da escola refere-se à organização de trabalhos conjuntos entre diferentes
instituições escolares. Para isso, é necessário realizar um mapeamento das
escolas que estejam realizando trabalhos interessantes com a questão racial.
Esse mapeamento pode ser desenvolvido pela universidade (um projeto de
extensão), pelos centros de formação de professores ou por equipes técnicas
da secretaria de educação e divulgado para as escolas. Após esse mapeamento,
pode-se promover encontros e trocas de experiências entre os docentes.
Para tal, é preciso flexibilizar os tempos escolares (que já está proposto na
LDB) e pensar em momentos de participação da comunidade junto com
os professores e alunos. Essa mesma estratégia pode ser realizada, numa
escala menor, no interior da própria escola. Quantas vezes temos vontade
de conhecer um trabalho interessante de uma colega ou de um grupo de
colegas e somos barrados pela rigidez do tempo escolar!
E, por último, penso que todo(a) educador(a), ao trabalhar com a questão
racial, deveria tomar conhecimento das lutas, demandas e conquistas do
Movimento Negro. Não podemos nos esquecer de que a inclusão da temática
racional na escola brasileira e o reconhecimento a sua inclusão no currículo
deve muito à atuação desse movimento.
Um primeiro passo para um trabalho envolvendo o Movimento Negro
poderia ser um mapeamento das entidades políticas e culturais que trabalham
com a questão racial. Onde se localizam? O que elas fazem? Quem delas
participa? Existe alguma organização desse tipo próximo da escola onde atuo?
Há quanto tempo ela existe? Os pais e alunos da comunidade participam
de alguma entidade política e cultural que luta contra o racismo e preserva
a cultural afro-brasileira? Esse pequeno levantamento poderá levar muitas
escolas a descobrirem entidades políticas negras e/ou grupos culturais negros
na sua própria região, possibilitando um trabalho integrado entre a escola
e a comunidade. Sem dúvida, essa iniciativa será a efetivação de um dos
objetivos do projeto político-pedagógico da escola. É bom lembrar que essa
atitude certamente trará um estranhamento para ambas as partes e exigirá
disposição, capacidade de negociação, maturidade, mudança de valores e
um outro entendimento da relação entre os saberes escolares e os saberes
culturais.
Todos nós estamos desafiados a pensar diferentes maneiras de trabalhar
com a questão racial na escola. Será que estamos dispostos? Podemos,
enquanto educadores(as) comprometidos(as) com a democracia e com a luta
pela garantia dos direitos sociais, recusar essa tarefa? A nossa meta final como
educadores(as) deve ser a igualdade dos direitos sociais a todos os cidadãos
e cidadãs. Não faz sentido que a escola, uma instituição que trabalha com
os delicados processos da formação humana, dentre os quais se insere a
diversidade étnico-racial, continue dando uma ênfase desproporcional à
aquisição dos saberes e conteúdos escolares e se esquecendo de que o humano
não se constitui apenas de intelecto, mas também de diferenças, identidades,
emoções, representações, valores, títulos... Dessa forma, entendo o processo
educacional de uma maneira mais ampla e profunda. Poderemos avançar
no nosso papel como educadores/as e realizar um trabalho competente em
relação à diversidade étnico-racial.
REFLETINDO SOBRE ALGUMAS ESTRATÉGIAS DE ATUAÇÃO
Nilma Lino Gomes
Professora Assistente do Departamento de Administração Escolar
da Faculdade de Educação da UFMG.
Doutoranda em Antropologia Social/USP
Gostaria de iniciar esse artigo relembrando um documentário muito
interessante intitulado Olhos Azuis1, que vale a pena ser visto. Esse
documento relata a experiência da sra. Jane Eliot, professora e psicóloga
branca nos EUA, que organiza e desenvolve um workshop com pessoas
de diferentes grupos étnico/raciais para discutir sobre o racismo e seus
desdobramentos.
Mas por que uma mulher branca nos EUA, poderia se interessar em
desenvolver um trabalho como esse? De acordo com o documentário,
tudo começou quando essa professora ainda lecionava
para crianças numa cidade do interior. Um dia, ela se viu
questionada pelos alunos sobre os motivos que levaram
ao assassinato do líder negro Martin Luther King, em
1968, nos EUA. A partir dessa curiosidade das crianças
a professora se viu diante de um desafio: como explicar
uma questão tão complexa para seus alunos? Que recursos
ela poderia usar para tornar o assunto compreensível
para aquelas crianças? Ela se deu conta de que não havia
recursos didáticos para explicar aos alunos o que era
realmente o racismo. Assim, a professora concluiu que
só se as pessoas pudessem se colocar no lugar daqueles
que eram discriminados racialmente, é que elas poderiam
compreender o que era o racismo. Então, ela teve uma
idéia: realizou com os seus alunos uma dinâmica de
grupo em que, durante um dia letivo inteiro, as crianças
que tivessem olhos azuis, passariam por uma situação
de discriminação. Elas deveriam ser rejeitadas pelas
outras devido à cor dos seus olhos. Ter olhos azuis seria,
a partir daquele momento, um atributo merecedor de
desprezo. A escolha da cor dos olhos, uma característica
do fenótipo (assim como a cor da pele), foi a forma mais
próxima de fazer as crianças se aproximarem do drama
dos negros que sofrem a discriminação racial devido a
fatores históricos, culturais e também raciais. Nesse caso,
a cor da pele, o tipo de cabelo, o formato dos lábios, entre
outras características que remetem à herança africana,
são vistos pelo racista como marca de inferioridade. A
dinâmica foi explicada e negociada previamente com
as crianças, que aceitaram a proposta. Então, durante
esse dia, as crianças de olhos azuis foram rejeitadas por
seus colegas que não conversavam direito com elas, não
as respeitavam, não bebiam no mesmo bebedouro, em
suma, as discriminavam. A professora acompanhou toda
a experiência e fotografou as crianças antes e depois do
trabalho. Ao terminar a aula, a classe inteira se reuniu
para discutir sobre o que havia acontecido. Os alunos e
as alunas falaram sobre o que sentiram, principalmente,
os de olhos azuis. Os sentimentos giravam em tomo de
sensações como: impotência, raiva, vontade de vingança,
tristeza, ressentimento, inferioridade e incapacidade.
A professora discutiu com a turma sobre o que eles
tinham achado do comportamento adotado pelos
alunos que não tinham olhos azuis. Ele fazia sentido?
Unanimemente, a classe disse que não. Concluíram,
a partir daquela experiência, que não se deve julgar e
maltratar as pessoas simplesmente porque nasceram com
a cor dos olhos diferente umas das outras. A cor dos
olhos em nada interfere no caráter, na personalidade e
na capacidade das pessoas e nem deveria ser um critério
para que alguns grupos humanos fossem tratados de
maneira desigual em relação aos outros. Após uma longa
conversa com os alunos, analisando cada fato acontecido
durante aquele dia letivo, a professora pôde relacionar a
dinâmica realizada com a questão racial. Explicou para
a classe o sistema escravista, o racismo e a situação dos
negros norte-americanos. Explicou, também, a atuação
de Martin Luther King na luta pelos direitos civis, pela
superação do racismo e o tanto que ele e outros ativistas
negros incomodavam a ordem racista que imperava na
Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação
sociedade norte-americana da época. Assim, ela também
pôde explicar por que esse grande líder negro havia sido
assassinado.
Diferentemente do que se possa pensar, a ousadia e a coragem da
professora não lhe renderam louvores e reconhecimento por parte da escola
e da comunidade. Logo que souberam do acontecido, os pais se voltaram
contra a educadora e retiraram as crianças da sala dela, pois não queriam os
filhos estudando com uma “amiga de negros”. A represália ainda foi maior.
A comunidade desprezou os filhos dessa mulher, boicotou o restaurante da
sua família, a ponto de o estabelecimento ir à falência, fora outros tipos de
insultos. Tudo isso, ao invés de desanimar a referida professora só serviu
para estimulá-la ainda mais na luta contra a ignorância e a hostilidade do
racismo, pois ela não queria, enquanto educadora, continuar contribuindo
para a formação de pessoas racistas. Assim, ela se enfronhou nas leituras
sobre as mais diferentes formas de racismo que existem no mundo, desde o
nazismo, o fascismo, o Apartheid, até os de tipo mais sutil. No decorrer dos
anos, a sua dinâmica foi se aperfeiçoando e, hoje, uma de suas atividades
profissionais tem sido a realização de workshop e dinâmicas de grupo que
possibilitem às pessoas vivenciar “na pele” o que é o racismo. É muito
interessante assistir ao documentário e à realização do workshop. Os
depoimentos dos negros, dos latinos e dos brancos que dele participam
são muito impressionantes. É muito interessante, também, ver as fotos das
crianças com as quais essa experiência se iniciou e ouvi-las hoje, depois
de adultas. Nos seus depoimentos, os ex-alunos, agora adultos, falam da
importância dessa experiência na sua vida e que a partir de então, eles se
construíram como pessoas que tentam desenvolver uma relação de respeito
com os negros e os outros segmentos discriminados.
Não quero estimular ninguém a desenvolver esse projeto sem o mínimo
de preparo, discernimento e entendimento sobre o tema. Todavia, quando
assisti ao filme, refleti sobre o quanto a discussão sobre a questão racial
está ligada a um terreno delicado: as nossas representações e os nossos
valores sobre o negro. O trabalho da professora norte-americana consiste
em colocar as pessoas que se inscrevem no seu workshop diante dos seus
próprios valores raciais, levando-as a questioná-los, a partir do momento em
que se encontram numa situação de discriminação semelhante àquela vivida
pelo outro, pelo diferente. Essas pessoas, por algumas horas, são obrigadas
a saírem do seu lugar, do seguro lugar ocupado pelo “nós” para estarem
no lugar do “outro”. E isso é muito complexo. Mexe com o que há de
mais íntimo nas pessoas e as questiona sobre o verdadeiro sentido dos seus
valores, dos seus julgamentos, dos seus preconceitos.
Penso que esse documentário deveria ser assistido pelos(as) professores(as).
Apesar de se referir à realidade dos EUA, ele toca em questões ligadas aos
preconceitos, às representações sobre o negro e às identidades, temáticas
que a escola, hoje, está cada vez mais desafiada a enfrentar e a tratar
pedagogicamente.
Dessa forma, o documentário serve para aguçar as nossas reflexões
sobre a realidade racial dos negros no Brasil. Ele também pode nos ajudar
a pensar o tratamento que a escola tem dado a essa questão. Como será que
nós, professores e professoras, temos trabalhado com a questão racial na
escola? Que atitudes tomamos frente às situações de discriminação racial no
interior da escola e da sala de aula? Até quando esperaremos uma situação
drástica de conflito racial ou enfrentamento para respondermos a essas
perguntas? Por que será que a questão racial ainda encontra tanta dificuldade
para entrar na escola e na formação do professorado brasileiro?
Ainda encontramos muitos(as) educadores(as) que pensam que discutir
sobre relações raciais não é tarefa da educação. É um dever dos militantes
políticos, dos sociólogos e antropólogos. Tal argumento demonstra uma
total incompreensão sobre a formação histórica e cultural da sociedade
brasileira. E, ainda mais, essa afirmação traz de maneira implícita a idéia de
que não é da competência da escola discutir sobre temáticas que fazem parte
do nosso complexo processo de formação humana. Demonstra, também, a
crença de que a função da escola está reduzida à transmissão dos conteúdos
historicamente acumulados, como se estes pudessem ser trabalhados de
maneira desvinculada da realidade social brasileira.
Não há como negar que a educação é um processo amplo e complexo
de construção de saberes culturais e sociais que fazem parte do acontecer
humano. Porém, não é contraditório que tantos educadores concordem
com essa afirmação e, ao mesmo tempo, neguem o papel da escola no trato
Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação
com a diversidade étnico-racial? Como podemos pensar a escola brasileira,
principalmente a pública, descolada das relações raciais que fazem parte da
construção histórica, cultural e social desse país? E como podemos pensar
as relações raciais fora do conjunto das relações sociais?
Para que a escola consiga avançar na relação entre saberes escolares/
realidade social/diversidade étnico-cultural é preciso que os(as) educadores(as)
compreendam que o processo educacional também é formado por dimensões
como a ética, as diferentes identidades, a diversidade, a sexualidade, a
cultura, as relações raciais, entre outras. E trabalhar com essas dimensões
não significa transformá-las em conteúdos escolares ou temas transversais,
mas ter a sensibilidade para perceber como esses processos constituintes da
nossa formação humana se manifestam na nossa vida e no próprio cotidiano
escolar. Dessa maneira, poderemos construir coletivamente novas formas de
convivência e de respeito entre professores, alunos e comunidade. É preciso
que a escola se conscientize cada vez mais de que ela existe para atender a
sociedade na qual está inserida e não aos órgãos governamentais ou aos
desejos dos educadores.
Contudo, não podemos generalizar e dizer que todos(as) os(as)
educadores(as) sofrem de apatia e passividade. Durante as palestras e debates
de que tenho participado nos últimos anos, tenho notado que, aos poucos,
vem crescendo o número de educadores(as) que desejam dar um tratamento
pedagógico à questão racial. Esse movimento tem impulsionado a escola
brasileira a pensar sobre a necessidade de se criar estratégias de combate ao
racismo na escola e de valorização da população negra na educação.
Porém, antes de pensarmos em quais estratégias poderemos adotar, é
importante que estejamos atentos ao seguinte ponto: se todos nós estamos
de acordo com a necessidade de se desenvolver estratégias de combate ao
racismo na escola (que é o objetivo desse livro), concordamos com o fato
de que o racismo existe na sociedade brasileira. E mais, concordamos que
racismo está presente na escola brasileira. Esse é um ponto importante porque
rompe com a hipocrisia da nossa sociedade diante da situação da população
negra e mestiça desse país e exige um posicionamento dos(as) educadores(as).
Essa constatação também contribui para desmascarar a 1mbigüidade do
racismo brasileiro que se manifesta através do histórico movimento de
afirmação/negação. No Brasil, o racismo ainda é insistentemente negado
no discurso do brasileiro, mas se mantém presente nos sistemas de valores
que regem o comportamento da nossa sociedade, expressando-se através das
mais diversas práticas sociais.2
E a escola? Ela manifesta essa ambigüidade? Sim, essa ambigüidade
também pode ser vista no discurso e na prática dos(as) professores(as). É
preciso enfrentar essa questão. Como nos diz PEREIRA (1996)3, ignorar essa
ambigüidade não nos levará a lugar algum. É preciso combatê-la.
Uma melhor compreensão sobre o que é o racismo e seus desdobramentos
poderia ser um dos caminhos para se pensar estratégias de combate ao racismo
na educação4. Muitos professores ainda pensam que o racismo se restringe à
realidade dos EUA, ao nazismo de Hitler e ao extinto regime do Apartheid
na África do Sul. Esse tipo de argumento é muito usado para explicar a
suposta inexistência do racismo no Brasil e ajuda a reforçar a ambigüidade
do racismo brasileiro. Além de demonstrar um profundo desconhecimento
histórico e conceptual sobre a questão, esse argumento nos revela os efeitos
do mito da democracia racial na sociedade brasileira, esse tão falado mito
que nos leva a pensar que vivemos em um paraíso racial.
O entendimento conceptual sobre o que é racismo, discriminação racial
e preconceito, poderia ajudar os(as) educadores(as) a compreenderem a
especificidade do racismo brasileiro e auxiliá-los a identificar o que é uma
prática racista e quando esta acontece no interior da escola. Essa é uma
discussão que deveria fazer parte do processo de formação dos professores.
Essa idéia está muito bem trabalhada num artigo escrito pelo professor João Baptista Borges Pereira.
Seria muito bom consultar: PEREIRA, João Baptista Borges. “Racismo à Brasileira”. In: MUNANGA,
Kabengele (org.). Estratégias políticas de combate ao racismo. São Paulo: EDUSP, 1996, p.75-78.
Sobre essa questão pode-se sugerir algumas obras como: BENTO, Maria Aparecida
Silva. Cidadania em preto e branco: discutindo as relações raciais. São Paulo: Ática, 1998;
GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de perto. Belo Horizonte: Mazza Edições,
1995; GONÇALVES, Luiz A. Oliveira e GONÇALVES e SILVA, Petronilha Beatriz. Jogo
das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos. Belo Horizonte: Autêntica, 1998;
MUNANGA, Kabengele (Org.) Estratégias políticas
de combate ao racismo. São Paulo: EDUSP, 1996; QUEIROZ, Renato da Silva. Não vi e não gostei:
o fenômeno do preconceito, São Paulo: Moderna, 1996.
Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação
Porém, é necessário que, na educação, a discussão teórica e conceptual sobre
a questão racial esteja acompanhada da adoção de práticas concretas. Julgo
que seria interessante se pudéssemos construir experiências de formação
em que os professores pudessem vivenciar, analisar e propor estratégias de
intervenção que tenham a valorização da cultura negra e a eliminação de
práticas racistas como foco principal. Dessa forma, o entendimento dos
conceitos estaria associado às experiências concretas, possibilitando uma
mudança de valores. Por isso, o contato com a comunidade negra, com os
grupos culturais e religiosos que estão ao nosso redor é importante, pois
uma coisa é dizer, de longe, que se respeita o outro, e outra coisa é mostrar
esse respeito na convivência humana, é estar cara a cara com os limites que
o outro me impõe, é saber relacionar, negociar, resolver conflitos, mudar
valores.
E é justamente o campo dos valores que apresenta uma maior
complexidade, quando pensamos em estratégias de combate ao racismo e
de valorização da população negra na escola brasileira. Tocar no campo dos
valores, das identidades, mexe com questões delicadas e subjetivas e nos leva
a refletir sobre diversos temas presentes no campo educacional. Um deles se
refere à autonomia do professor.
Mas qual é a relação entre autonomia do professor e a questão racial?
Para responder a essa pergunta, gostaria que refletíssemos sobre quais são as
interpretações do professorado sobre a autonomia em sala de aula. Já ouvi
muitos(as) educadores(as) dizerem que a autonomia do docente significa a
liberdade de escolha para adotar uma determinada metodologia, discutir
ou não certas temáticas, usar da sua autoridade para com o aluno, discutir
política partidária no interior da escola, entre outros. Todos nós sabemos
que a autonomia não se reduz a isso. Porém, ao tratar da temática racial,
alguns docentes usam de uma compreensão deturpada de autonomia para
reproduzir e produzir práticas racistas.
Ao entrar nesse debate, estamos questionando a nossa atuação profissional
e a nossa postura ética diante da diversidade étnico-cultural e das suas
diferentes manifestações no interior da escola. Que tipo de profissionais
temos sido? A educação carece de princípios éticos que orientem a prática
pedagógica e a sua relação com a questão racial na escola e na sala de aula.
Isso não significa desrespeitar a autonomia do professor, mas entendê-la e,
muitas vezes, questioná-la. Significa perguntar até que ponto, em nome de
uma suposta autonomia, uma professora pode colocar uma criança negra
para dançar com um pau de vassoura durante uma festa junina porque
nenhum coleguinha queria dançar com um “negrinho”.5 Discutir essa
“autonomia” do professor representa, também, denunciar práticas em que
o (a) professor(a) estabelece que o castigo para os alunos “desobedientes”
será sentar ao lado do aluno negro da sala. Representa abrir um processo
jurídico contra uma professora que, devido a um desentendimento político
com uma colega, se julga no direito de entrar em sua sala de aula e xingá-la
e “negra suja”. A escola deve, por um acaso, em nome da “autonomia” de
cada docente, permitir e ser conivente com o (a) professor(a) que permite
que as meninas brancas chamem a colega negra de “negra do cabelo duro”
ou “cabelo de bombril”? Questiono, então: que autonomia é essa? Respondo:
autonomia não significa ser livre para fazer o que eu quero. É preciso que as
práticas pedagógicas sejam orientadas por princípios éticos que norteiem as
relações estabelecidas entre professores, pais e alunos no interior das escolas
brasileiras. E é necessário inserir a discussão sobre o tratamento que a escola
tem dado às relações raciais no interior desse debate.
Refletir sobre os valores que estão por detrás de práticas como as que
citamos anteriormente nos leva a pensar que não basta apenas lermos o
documento de “Plural idade Cultural”, ou analisarmos o material didático, ou
discutirmos sobre as questões curriculares presentes na escola se não tocarmos
de maneira séria no campo dos valores, das representações sobre o negro,
que professores(as) e alunos(as) negros, mestiços e brancos possuem. Esses
valores nunca estão sozinhos. Eles, na maioria das vezes, são acompanhados
de práticas que precisam ser revistas para construirmos princípios éticos e
realizarmos um trabalho sério e competente com a diversidade étnico-racial
na escola. É preciso abrir esse debate e tocar com força nessa questão tão
delicada. Caso contrário, continuaremos acreditando que a implementação
As situações apresentadas nesse artigo são verídicas, ocorrendo no interior de escolas
públicas municipais e estaduais de Belo Horizonte. Por uma questão de ética, não
mencionarei o nome das instituições onde ocorreram as práticas discriminatórias aqui
descritas.
Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação
de práticas anti-racistas no interior da escola só dependerá do maior acesso
à informação ou do processo ideológico de politização das consciências
dos docentes. Reafirmo que é preciso construir novas práticas. Julgo ser
necessário que os(as) educadores(as) se coloquem na fronteira desse debate
e que a cobrança de novas posturas diante da questão racial passe a ser uma
realidade, não só dos movimentos negros, mas também dos educadores,
dos sindicatos e dos centros de formação de professores. Quem sabe
assim poderemos partir para iniciativas concretas, desenvolvendo projetos
pedagógicos juntamente com a comunidade negra, com as ONG’s e com
os movimentos sociais. Assim, poderemos realizar discussões na escola que
trabalhem temas como: a influência da mídia, a religião, a cultura, a estética,
a corporeidade, a música, a arte, os movimentos culturais, na perspectiva
afro-brasileira. Essas e outras temáticas podem e devem ser realizadas ao
longo do processo escolar e não somente nas datas comemorativas, na
semana do folclore ou durante a semana da cultura.
Uma estratégia interessante e que poderá nos ajudar na mudança
de valores e práticas é conhecer outras experiências de intervenção bem
sucedidas no trato da questão racial. Posso citar, nas poucas páginas desse
artigo, a experiência do Núcleo de Estudos Negros – NEN, de Florianópolis.
Além de publicações e de folhetos informativos, esse grupo tem produzido
vídeos, participado e promovido debates com a presença de especialistas
na área, orientado projetos nas escolas, etc. A série “Pensamento Negro
em Educação” é uma publicação desse grupo quee deveria fazer parte da
biblioteca de todo(a) professor(a)6.
O Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê7 em Salvador é também uma
experiência que deve ser conhecida e que trabalha na fronteira da mudança de
valores e instauração de novas práticas. Esse projeto tem realizado trabalhos
Para melhor conhecer o trabalho do NEN: Núcleo de Estudos Negros - Rua Joana de
Gusmão, sala 303, CEP 88.010-420 - Centro - Florianópolis - SC - Tel: (048)224
0769, e-mail: nen@ced.ufsc.br.
Associação Cultural Ilê Aiyê surgiu há 22 anos a partir do bloco carnavalesco Ilê Aiyê.
O endereço para contato é: Rua do Curuzu, 233 - Liberdade - CEP.: 40.365-000 - Salvador
-Bahia - Telefax: (071)241-4969.
em parceria com escolas públicas, capacitando professores(as) e envolvendo
os alunos em projetos pedagógicos e oficinas, cuja temática racial é o objetivo
principal. Além desse projeto, o Ilê Aiyê mantém, desde 1988, a escola
comunitária de ensino fundamental Mãe Hilda, no bairro da Liberdade, cujo
projeto pedagógico tem como base a cultura e a história do povo negro no
Brasil. O Ilê ainda mantém uma escola de percussão, a Banda Erê, formada
por crianças da comunidade e por meninos de rua. Para quem quiser
acompanhar todos esses trabalhos, a Associação Cultural Ilê Aiyê publica
o Caderno de Educação do Ilê Aiyê, um material que pode ser adquirido e
utilizado pelas escolas e pelos centros de formação de professores.
As duas experiências acima citadas exemplificam práticas que têm sido
desenvolvidas no Brasil e que têm como enfoque o trabalho com educação
e relações raciais. Infelizmente, esses e outros trabalhos importantes ainda
não são conhecidos pelos educadores. Conhecê-los, visitá-los, solicitar
assessoria e adquirir o material, poderá ser uma importante estratégia a ser
desenvolvida pelas escolas. Assim, quem sabe, os professores deixarão de
perguntar o quê e como fazer, para se relacionarem com quem já tem feito
há muito tempo.
Não dá mais para dizer que as experiências não existem. Será que temos tido
oportunidade e/ou boa vontade de conhecê-las? Será que os órgãos oficiais,
os centros de formação de professores, as propostas inovadoras de educação,
têm tido o interesse de mapeá-las e divulgá-las? Pensar na inserção política e
pedagógica da questão racial nas escolas significa muito mais do que ler livros
e manuais informativos. Representa alterar os valores, a dinâmica, a lógica,
o tempo, o espaço, o ritmo e a estrutura das escolas. Significa dar subsídios
aos professores, colocá-los em contato com as discussões mais recentes sobre
os processos educativos, culturais, políticos. Mas, para que isso aconteça, não
basta somente desejarmos ardentemente ou reclamarmos cotidianamente de
que nenhuma iniciativa tem sido tomada. A escola e os educadores têm
que se mobilizar. Nós, os(as) professores(as), somos conhecidos como uma
categoria de lutas e de conquistas. Se reconhecemos que o trato pedagógico
da diversidade é um direito de do cidadão pertencente a qualquer grupo
étnico-racial e um interesse dos educadores, que têm compromisso com a
extensão da cidadania e democracia, pergunto: que movimento temos feito
em direção a um trabalho pedagógico com a questão racial? Para se realizar
Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação
mudanças é preciso que haja movimento. E movimento não combina com
ações isoladas. É preciso que nos organizemos enquanto grupo.
Uma outra proposta de trabalho com a diversidade étnico-racial e que
pode ser considerada como uma estratégia de combate ao racismo no interior
da escola refere-se à organização de trabalhos conjuntos entre diferentes
instituições escolares. Para isso, é necessário realizar um mapeamento das
escolas que estejam realizando trabalhos interessantes com a questão racial.
Esse mapeamento pode ser desenvolvido pela universidade (um projeto de
extensão), pelos centros de formação de professores ou por equipes técnicas
da secretaria de educação e divulgado para as escolas. Após esse mapeamento,
pode-se promover encontros e trocas de experiências entre os docentes.
Para tal, é preciso flexibilizar os tempos escolares (que já está proposto na
LDB) e pensar em momentos de participação da comunidade junto com
os professores e alunos. Essa mesma estratégia pode ser realizada, numa
escala menor, no interior da própria escola. Quantas vezes temos vontade
de conhecer um trabalho interessante de uma colega ou de um grupo de
colegas e somos barrados pela rigidez do tempo escolar!
E, por último, penso que todo(a) educador(a), ao trabalhar com a questão
racial, deveria tomar conhecimento das lutas, demandas e conquistas do
Movimento Negro. Não podemos nos esquecer de que a inclusão da temática
racional na escola brasileira e o reconhecimento a sua inclusão no currículo
deve muito à atuação desse movimento.
Um primeiro passo para um trabalho envolvendo o Movimento Negro
poderia ser um mapeamento das entidades políticas e culturais que trabalham
com a questão racial. Onde se localizam? O que elas fazem? Quem delas
participa? Existe alguma organização desse tipo próximo da escola onde atuo?
Há quanto tempo ela existe? Os pais e alunos da comunidade participam
de alguma entidade política e cultural que luta contra o racismo e preserva
a cultural afro-brasileira? Esse pequeno levantamento poderá levar muitas
escolas a descobrirem entidades políticas negras e/ou grupos culturais negros
na sua própria região, possibilitando um trabalho integrado entre a escola
e a comunidade. Sem dúvida, essa iniciativa será a efetivação de um dos
objetivos do projeto político-pedagógico da escola. É bom lembrar que essa
atitude certamente trará um estranhamento para ambas as partes e exigirá
disposição, capacidade de negociação, maturidade, mudança de valores e
um outro entendimento da relação entre os saberes escolares e os saberes
culturais.
Todos nós estamos desafiados a pensar diferentes maneiras de trabalhar
com a questão racial na escola. Será que estamos dispostos? Podemos,
enquanto educadores(as) comprometidos(as) com a democracia e com a luta
pela garantia dos direitos sociais, recusar essa tarefa? A nossa meta final como
educadores(as) deve ser a igualdade dos direitos sociais a todos os cidadãos
e cidadãs. Não faz sentido que a escola, uma instituição que trabalha com
os delicados processos da formação humana, dentre os quais se insere a
diversidade étnico-racial, continue dando uma ênfase desproporcional à
aquisição dos saberes e conteúdos escolares e se esquecendo de que o humano
não se constitui apenas de intelecto, mas também de diferenças, identidades,
emoções, representações, valores, títulos... Dessa forma, entendo o processo
educacional de uma maneira mais ampla e profunda. Poderemos avançar
no nosso papel como educadores/as e realizar um trabalho competente em
relação à diversidade étnico-racial.
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