CONSTRUINDO
A AUTO-ESTIMA DA CRIANÇA NEGRA
Análise do texto de Inaldete
Pinheiro de Andrade pela professora Leda Beatriz Laurensi do Colégio Estadual Cristo Rei
O texto
trata e retrata as contações de histórias na infância e da
desigualdade hoje, que há entre Tv e Livros. O incentivo à leitura
e o hábito da mesma.
Coloca o
livro infantil como recurso de confronto com a televisão,
fundamentando o conhecimento das relações raciais na produção da
literatura infanto-juvenil brasileira. Apreender o lugar que ocupava
a personagem negra incluida nas histórias. Também, relacionar os
livros recomendáveis e os que apresentam os estereótipos
disseminados na sociedade.
A partir
daí, os livros que reforçavam a imagem do povo negro passou a fazer
parte da Oficina de Leitura.
A
metodologia escolhida foi a de escolher a obra de acordo com a faixa
etária e nivel de leitura do grupo. Buscou-se a análise, a
expressão da turma de forma oral e através dos desenhos. Após os
trabalhos eram expostos e o grupo fazia as observações necessárias
provocando a auto-estima da criançada.
O
trabalho pautou-se no resgate da memória do povo negro, na honra de
pertencer a este movimento, buscando o prazer na leitura e a
construção da auto-estima.
“Resgate
da memória, resgate da identidade do povo negro”.
CONSTRUINDO A AUTO-ESTIMA DA CRIANÇA NEGRA
Inaldete Pinheiro de Andrade
Educadora do Centro Solano Trindade.
Mestre em Serviço Social.
Introdução
Na véspera de iniciar a produção deste texto, acordei após um sonho que,
acordada, eu vivo sonhando: eu montava uma biblioteca em comunidades
pobres, abria as suas portas, muitas crianças vinham visitá-la e eu lhes
apresentava a seção de literatura infanto-juvenil. Elas ficavam fascinadas
e deliciavam-se com cada livro às mãos. Algumas, entre elas, iniciavam a
alfabetização lendo aqueles livros. Acordei com uma sensação de plenitude
e, mantendo os olhos fechados, alimentava o sonho e convocava mais gente
para viajar nesta possibilidade.
O passado
Eu sou da geração da história de Trancoso: as mulheres mais velhas
contando as histórias e a criançada em volta delas, corações palpitando
para ouvir o “Era uma vez...”; era mais uma história iniciada. Lembro da
Moura Torta, a velha invejosa; a Gata Borralheira e a madrasta (a fama que
ficou para as madrastas não é das melhores); a menina que foi enterrada
viva e os seus cabelos transformaram-se em capim que cresceu no quintal,
denunciando a maldade do pai, o agressor. Eram muitas histórias e noutras
noites pedíamos bis, não nos cansávamos, nem as mulheres contadoras:
mamãe, Baía, a velha parteira e outras vizinhas que gozavam de lugar
cativo nas noites em volta da mesa no terreiro, extensão da casa. Depois, o
tempo dos livros; agora, já vinham como presente e a leitura era da minha
responsabilidade. O fascínio de ouvir as histórias não fora perdido com as
demais leituras, que foram incorporadas às atividades do meu cotidiano.
O presente
Hoje, já não há a roda em volta da mesa e o terreiro como extensão
casa; só os terreiros religiosos, que continuam agregando a família negra,
multiplicando-se em várias famílias, pais e mães-de-santo, filhos e filhas em
lugares diversos.
O “em volta da mesa” foi lentamente substituído pela televisão e outras
histórias foram introduzidas no cotidiano das crianças, com o plágio de
fadas no ar ao vivo por três a quatro horas consecutivas, diariamente,
com músicas, desenhos animados e brincadeiras distantes do ambiente da
maioria das crianças brasileiras- Uma amostra perversa para a construção de
referência deste segmento.
O livro infantil passou a ser um recurso de confronto com a televisão,
competição desigual dentro de uma arena onde poucas pessoas sabem e
gostam de ler. Algumas escolas particulares passaram a introduzir a literatura
infantil na disciplina de Português, como leitura obrigatória de um livro por
unidade, sendo que nas escolas públicas, na minha experiência, a existência
desses livros nas prateleiras da biblioteca nunca fora indicada ao menos por
unidade. Para quem tem estímulo da leitura a obrigação é transformada em
prazer e o hábito pode tornar-se uma prática efetiva (conheço uma professora
que está alfabetizando a turma com a leitura de histórias infantis, numa
escola pública de Pernambuco. Quando, por alguma razão, a professora não
encaminha a turma para a biblioteca, há quem reclame).
O prazer da leitura acompanhou-me da infância ao presente e com
ela a literatura infanto-juvenil. Diante do que falei acima, a militância
no Movimento Negro direcionou-me a utilizá-la como instrumento de
identificação das relações raciais no Brasil. Defino: literatura infanto-juvenil,
a literatura feita por pessoas adultas para crianças e jovens. É uma arte que
povoa a imaginação, e por isso, tem o seu espaço na formação da mente
plástica do ser que a ela tem acesso.
Para fundamentar o conhecimento das relações raciais na produção
da literatura infanto-juvenil brasileira, realizei uma pesquisa dos livros
dessa área que chegavam às livrarias do Recife entre os anos de 82 a 84.
Deveria apreender o lugar que ocupava a personagem negra incluída
naquelas histórias. A seleção consistia no livro cujo título, conteúdo e/ou
ilustração, fazia referência a este sujeito. Com este propósito adquiri 80
volumes, uma amostra que incluiu autores e autoras com mais de uma
publicação, o que, aliás, colaborou para avaliar com mais segurança a sua
participação neste recorte. Na análise, fui inclinada a fazer diferenças entre
os livros recomendáveis e os que acrescentam os estereótipos disseminados
na sociedade, com conteúdo explicitamente racista.
Oficina de literatura infanto-juvenil
Os livros que reforçavam a imagem do povo negro passaram a fazer parte
da Oficina de Leitura, onde desenvolvi, em 1987, uma metodologia de resgate
de identidade racial feita principalmente para crianças e/ou jovens nas áreas
periféricas do Recife, nas escolas ou locais comunitários, após contatos com
suas lideranças ou por solicitação das mesmas. Não é preciso lembrar que
a maioria desta população é afro-descendente. A exceção foi quando lancei
dois textos meus, realizando as Oficinas em escolas particulares, onde a
quase totalidade da turma era de origem branca, com uma ou três crianças
de origem negra nas salas de aula. A metodologia exige escolher a obra de
acordo com a faixa etária e nível de leitura do grupo. Pede para se fazer a
leitura individual ou coletiva, de acordo com a disposição do grupo ou
do(a) facilitador(a). Finda a leitura, faz-se a análise, estimulando a expressão
da turma que pode ser oral ou em desenho, dependendo de como a pessoa
ou grupo queira expressar-se (vivi a ocasião em que o silêncio foi a forma de
interpretação de algumas pessoas). Nas interpretações é possível apreender
a manifestação da identidade racial, problema do grupo participante. Feita
a exposição, fazem-se as observações necessárias, situando o presente para
projetar o futuro com o estímulo à promoção da auto-estima da criançada.
Memória, identidade e referência
Para apoiar a metodologia, recorri ao conceito de memória como o
órgão que armazena as experiências positivas e negativas e “que formam o
patrimônio cultural de cada pessoa” (DISTANTE, 1988, p. 88). A memória,
vinda das experiências com a escola, a igreja, os meios de comunicação, com as
expressões orais – piadas, música, anedotas, vaias etc. – mantém em evidência
uma clara referência ao passado escravo vivido pela ancestralidade negra no
Brasil. A introjeção desse passado fragmenta negativamente a identidade
da criança negra quando ela quer “reconhecer-se no passado e imaginar-se
no futuro” (MUSZKAT, 1986, p. 27). Distante define a identidade de uma
pessoa como a consciência de que o seu modo de ser, de viver e de falar seja
semelhante ou até mesmo possa identificar-se com o modo de ser, de viver
e de falar de um determinado povo ou de uma determinada comunidade
ou tribo (DISTANTE, op. cit., p. 83). Juntar os fragmentos da memória
constitui o processo de identidade de uma pessoa.
Pergunto: que orgulho tem a criança negra quando busca na memória a
história do seu povo? Qual o papel do seu povo na história do Brasil? Como
a família que coleciona a mesma memória administra as inquietações – ou
o silêncio – dessa criança?
É a ausência de referência positiva na vida da criança e da família, no
livro didático e nos demais espaços mencionados que esgarça os fragmentos
de identidade da criança negra, que muitas vezes chega à fase adulta com
total rejeição à sua origem racial, trazendo-lhe prejuízo à sua vida cotidiana.
Referências, segundo Distante, são pontos claros no próprio passado
(DISTANTE, op. cit., p. 84). Se a pessoa acumula na sua memória as
referências positivas do seu povo, é natural que venha à tona o sentimento
de pertencimento como reforço à sua identidade racial. O contrário é fácil
de acontecer, se se alimenta uma memória pouco construtiva para sua
humanidade. É a última experiência que a militância do Movimento Negro
depõe ao assumir o novo status – o status de pertencer ao povo negro – e
o mesmo depoimento tenho encontrado na maioria das crianças ou jovens
nas Oficinas de Auto-estima, que também chamo de Identidade Racial. Para
refazer o presente – a identidade – a Oficina leva ao caminho de volta – a
memória – aproveitando ou estimulando no prazer da leitura e, através
dessa, a construção da auto-estima. É tentar refazer a história individual
na história coletiva então desprovida, na maioria das vezes, de referências
encobertas na memória. Positivar o lado negro de cada criança, positivar o
passado escravo, através das histórias de resistências ou de simples amostras
de ilustrações de personagens negras. Nisto consiste a Oficina de Identidade
Racial.
As parcerias
Considerável número de escritores e escritoras têm contribuído para a
dinâmica dessa Oficina, inclusive com textos adequados para os diversos
níveis de leitura. São: Ana Maria Machado, a maior colaboradora; Joel
Rufino dos Santos, Ruth Rocha, Alaíde Lisboa de Oliveira, Giselda Laporta
Nicolelis, Mirna Pinsky, Isa Silveira Leal, Margarida Ottoni, Ronaldo Simãos
Coelho, Lúcia Pimentel Góes, Tenê e Rogério Andrade Barbosa. São livros
com 8 a 16 páginas que cobrem um horário regular de aula. Para jovens com
desenvoltura na leitura indico os livros de Júlio José Chiavenato, Lourenço
Cazarré, Barioni Ortêncio, Lúcia Ramos, Lucília Junqueira de Almeida
Prado, Renato Pallottini, Jair Vitória, Luiz Galdino, além de outros livros
dos escritores e das escritoras acima com a mesma temática. São livros para
serem lidos em casa, dado o maior número de páginas que contêm. Estas
parcerias têm sido presença constante nesta prática, pela seriedade com que
incluíram a questão negra no seu discurso. É bem possível que eu tenha
omitido o nome de alguém que compartilha desta literatura, por falta de
conhecimento.
Outros temas dentro da literatura infanto-juvenil
Outros temas podem também ser discutidos com a mesma metodologia,
como a questão indígena, a ecologia, o gênero, a sexualidade. A oferta do
material produzido atende às minhas necessidades de facilitadora da Oficina,
é só passar um tempo nas livrarias e/ou bibliotecas.
Nesta altura o sonho real continua. Tenho trocado tal experiência com
outras pessoas que já multiplicaram-na além da região metropolitana do
Recife.
Uma liderança de uma das Comunidades Negras Rurais disse que, quando
se olhava, olhava o povo onde ela nasceu e vive, tinha um sentimento tão
estranho de anonimato que ela não sabe e não pode expressar, ainda hoje,
tamanho era o vazio existente. Ela não tinha nenhuma ponte que a ligasse
ao passado. Não tinha memória, não tinha identidade, avalia. No momento
em que ela, junto com dois ou três companheiros, pegaram um fio da meada,
a volta foi fantástica; atravessaram a ponte e tudo reconstituiu-se. Hoje ela
e muitos outros e muitas outras sabem de onde vieram e sabem para onde
vão. A história de vida agora é outra. Hoje lá se fala “o meu povo”.
Visitando as Comunidades Negras Rurais do Estado, ouvi pontos de
identificação em que, com um estímulo a mais, os fragmentos sedimentarão
os processos de identidade racial, fundamental para que cada população
tome às mãos o comando do seu destino histórico no mundo. Continuarei
com o sonho da construção da biblioteca em cada lugar onde não existe
uma.
Ao Professorado
A Oficina de Leitura apresentada não constitui uma receita para ser
seguida à risca. A criatividade de cada facilitador(a) pode movimentá-la como
desejar. O termo facilitador(a) é próprio para a prática porque a função é
tornar fáceis as questões que as crianças encontram na discussão. Para isso,
esta pessoa tem que ser ou estar livre dos estereótipos arraigados na sociedade
brasileira e que corroem como metástase o corpo da sua diversidade racial.
Uma Oficina não é suficiente para crianças brancas ou negras
reconhecerem-se como seres diferentes, com histórias diferentes, nem
superiores nem inferiores. Uma Oficina é um momento de reflexão que
deve ser bem conduzida pelo(a) facilitador(a), de modo que as crianças
saiam dela fortalecidas – e não envergonhadas, brancas ou negras – para
continuar uma convivência onde os estereótipos consigam ser corrigidos e
ambos os grupos vivam com mais saúde, livres do racismo, já que o racismo
destrói quem o manifesta e quem é vítima. Uma Oficina pode dar seqüência
a tantas outras, quando convier. Mãos às obras, literalmente!
Eu estou acordada, terminando o texto e quero fazer deste sonho uma
realidade, tão real quanto a minha memória e a minha identidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGR ̆FICAS
ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Ensaio para uma Literatura Infanto-
juvenil Libertadora. Recife, 1986, mímeo.
________. Cincos Cantigas para se Contar. Recife: Produção Alternativa,
1989.
________. Pai Adão Era Nagô. Produção Alternativa. Recife, 1989.
CARVALHO, Bárbara Vasconcelos de. A Literatura Infantil: visão histórica
e crítica. 5a edição. São Paulo: Global, 1987.
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil: teoria e prática. São
Paulo: Ática, 1983.
DISTANTE, Camelo. Memória e Identidade. In: Identidade e Memória.
Tempo Brasileiro,
no 95, Rio de Janeiro, out./dez de 1998.
ERIKSON, Erik H. Identidade, Juventude e Crise. 2a edição. Rio de Janeiro:
Zahar, 1976
MUSZKAT, Malvina. Consciência e Identidade. Série Princípios no73. São
Paulo: Ática, 1986.
PERROTI, Edmir. O Texto Sedutor na Literatura Infantil. São Paulo: Ícone,
1986.
ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura Infantil e Ideologia. São Paulo: Global,
1985.
SILVA, Ana Célia da. A Discriminação do Negro no Livro Didático.
Salvador: CEAO/UFBa,1995.
ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. 2a edição. São Paulo:
Global, 1982.
________; LAJOLO, Marisa. Literatura Infantil Brasileira. História e
Histórias. São Paulo: Ática, 1984.
123
Inaldete Pinheiro de Andrade
Educadora do Centro Solano Trindade.
Mestre em Serviço Social.
Introdução
Na véspera de iniciar a produção deste texto, acordei após um sonho que,
acordada, eu vivo sonhando: eu montava uma biblioteca em comunidades
pobres, abria as suas portas, muitas crianças vinham visitá-la e eu lhes
apresentava a seção de literatura infanto-juvenil. Elas ficavam fascinadas
e deliciavam-se com cada livro às mãos. Algumas, entre elas, iniciavam a
alfabetização lendo aqueles livros. Acordei com uma sensação de plenitude
e, mantendo os olhos fechados, alimentava o sonho e convocava mais gente
para viajar nesta possibilidade.
O passado
Eu sou da geração da história de Trancoso: as mulheres mais velhas
contando as histórias e a criançada em volta delas, corações palpitando
para ouvir o “Era uma vez...”; era mais uma história iniciada. Lembro da
Moura Torta, a velha invejosa; a Gata Borralheira e a madrasta (a fama que
ficou para as madrastas não é das melhores); a menina que foi enterrada
viva e os seus cabelos transformaram-se em capim que cresceu no quintal,
denunciando a maldade do pai, o agressor. Eram muitas histórias e noutras
noites pedíamos bis, não nos cansávamos, nem as mulheres contadoras:
mamãe, Baía, a velha parteira e outras vizinhas que gozavam de lugar
cativo nas noites em volta da mesa no terreiro, extensão da casa. Depois, o
tempo dos livros; agora, já vinham como presente e a leitura era da minha
responsabilidade. O fascínio de ouvir as histórias não fora perdido com as
demais leituras, que foram incorporadas às atividades do meu cotidiano.
O presente
Hoje, já não há a roda em volta da mesa e o terreiro como extensão
casa; só os terreiros religiosos, que continuam agregando a família negra,
multiplicando-se em várias famílias, pais e mães-de-santo, filhos e filhas em
lugares diversos.
O “em volta da mesa” foi lentamente substituído pela televisão e outras
histórias foram introduzidas no cotidiano das crianças, com o plágio de
fadas no ar ao vivo por três a quatro horas consecutivas, diariamente,
com músicas, desenhos animados e brincadeiras distantes do ambiente da
maioria das crianças brasileiras- Uma amostra perversa para a construção de
referência deste segmento.
O livro infantil passou a ser um recurso de confronto com a televisão,
competição desigual dentro de uma arena onde poucas pessoas sabem e
gostam de ler. Algumas escolas particulares passaram a introduzir a literatura
infantil na disciplina de Português, como leitura obrigatória de um livro por
unidade, sendo que nas escolas públicas, na minha experiência, a existência
desses livros nas prateleiras da biblioteca nunca fora indicada ao menos por
unidade. Para quem tem estímulo da leitura a obrigação é transformada em
prazer e o hábito pode tornar-se uma prática efetiva (conheço uma professora
que está alfabetizando a turma com a leitura de histórias infantis, numa
escola pública de Pernambuco. Quando, por alguma razão, a professora não
encaminha a turma para a biblioteca, há quem reclame).
O prazer da leitura acompanhou-me da infância ao presente e com
ela a literatura infanto-juvenil. Diante do que falei acima, a militância
no Movimento Negro direcionou-me a utilizá-la como instrumento de
identificação das relações raciais no Brasil. Defino: literatura infanto-juvenil,
a literatura feita por pessoas adultas para crianças e jovens. É uma arte que
povoa a imaginação, e por isso, tem o seu espaço na formação da mente
plástica do ser que a ela tem acesso.
Para fundamentar o conhecimento das relações raciais na produção
da literatura infanto-juvenil brasileira, realizei uma pesquisa dos livros
dessa área que chegavam às livrarias do Recife entre os anos de 82 a 84.
Deveria apreender o lugar que ocupava a personagem negra incluída
naquelas histórias. A seleção consistia no livro cujo título, conteúdo e/ou
ilustração, fazia referência a este sujeito. Com este propósito adquiri 80
volumes, uma amostra que incluiu autores e autoras com mais de uma
publicação, o que, aliás, colaborou para avaliar com mais segurança a sua
participação neste recorte. Na análise, fui inclinada a fazer diferenças entre
os livros recomendáveis e os que acrescentam os estereótipos disseminados
na sociedade, com conteúdo explicitamente racista.
Oficina de literatura infanto-juvenil
Os livros que reforçavam a imagem do povo negro passaram a fazer parte
da Oficina de Leitura, onde desenvolvi, em 1987, uma metodologia de resgate
de identidade racial feita principalmente para crianças e/ou jovens nas áreas
periféricas do Recife, nas escolas ou locais comunitários, após contatos com
suas lideranças ou por solicitação das mesmas. Não é preciso lembrar que
a maioria desta população é afro-descendente. A exceção foi quando lancei
dois textos meus, realizando as Oficinas em escolas particulares, onde a
quase totalidade da turma era de origem branca, com uma ou três crianças
de origem negra nas salas de aula. A metodologia exige escolher a obra de
acordo com a faixa etária e nível de leitura do grupo. Pede para se fazer a
leitura individual ou coletiva, de acordo com a disposição do grupo ou
do(a) facilitador(a). Finda a leitura, faz-se a análise, estimulando a expressão
da turma que pode ser oral ou em desenho, dependendo de como a pessoa
ou grupo queira expressar-se (vivi a ocasião em que o silêncio foi a forma de
interpretação de algumas pessoas). Nas interpretações é possível apreender
a manifestação da identidade racial, problema do grupo participante. Feita
a exposição, fazem-se as observações necessárias, situando o presente para
projetar o futuro com o estímulo à promoção da auto-estima da criançada.
Memória, identidade e referência
Para apoiar a metodologia, recorri ao conceito de memória como o
órgão que armazena as experiências positivas e negativas e “que formam o
patrimônio cultural de cada pessoa” (DISTANTE, 1988, p. 88). A memória,
vinda das experiências com a escola, a igreja, os meios de comunicação, com as
expressões orais – piadas, música, anedotas, vaias etc. – mantém em evidência
uma clara referência ao passado escravo vivido pela ancestralidade negra no
Brasil. A introjeção desse passado fragmenta negativamente a identidade
da criança negra quando ela quer “reconhecer-se no passado e imaginar-se
no futuro” (MUSZKAT, 1986, p. 27). Distante define a identidade de uma
pessoa como a consciência de que o seu modo de ser, de viver e de falar seja
semelhante ou até mesmo possa identificar-se com o modo de ser, de viver
e de falar de um determinado povo ou de uma determinada comunidade
ou tribo (DISTANTE, op. cit., p. 83). Juntar os fragmentos da memória
constitui o processo de identidade de uma pessoa.
Pergunto: que orgulho tem a criança negra quando busca na memória a
história do seu povo? Qual o papel do seu povo na história do Brasil? Como
a família que coleciona a mesma memória administra as inquietações – ou
o silêncio – dessa criança?
É a ausência de referência positiva na vida da criança e da família, no
livro didático e nos demais espaços mencionados que esgarça os fragmentos
de identidade da criança negra, que muitas vezes chega à fase adulta com
total rejeição à sua origem racial, trazendo-lhe prejuízo à sua vida cotidiana.
Referências, segundo Distante, são pontos claros no próprio passado
(DISTANTE, op. cit., p. 84). Se a pessoa acumula na sua memória as
referências positivas do seu povo, é natural que venha à tona o sentimento
de pertencimento como reforço à sua identidade racial. O contrário é fácil
de acontecer, se se alimenta uma memória pouco construtiva para sua
humanidade. É a última experiência que a militância do Movimento Negro
depõe ao assumir o novo status – o status de pertencer ao povo negro – e
o mesmo depoimento tenho encontrado na maioria das crianças ou jovens
nas Oficinas de Auto-estima, que também chamo de Identidade Racial. Para
refazer o presente – a identidade – a Oficina leva ao caminho de volta – a
memória – aproveitando ou estimulando no prazer da leitura e, através
dessa, a construção da auto-estima. É tentar refazer a história individual
na história coletiva então desprovida, na maioria das vezes, de referências
encobertas na memória. Positivar o lado negro de cada criança, positivar o
passado escravo, através das histórias de resistências ou de simples amostras
de ilustrações de personagens negras. Nisto consiste a Oficina de Identidade
Racial.
As parcerias
Considerável número de escritores e escritoras têm contribuído para a
dinâmica dessa Oficina, inclusive com textos adequados para os diversos
níveis de leitura. São: Ana Maria Machado, a maior colaboradora; Joel
Rufino dos Santos, Ruth Rocha, Alaíde Lisboa de Oliveira, Giselda Laporta
Nicolelis, Mirna Pinsky, Isa Silveira Leal, Margarida Ottoni, Ronaldo Simãos
Coelho, Lúcia Pimentel Góes, Tenê e Rogério Andrade Barbosa. São livros
com 8 a 16 páginas que cobrem um horário regular de aula. Para jovens com
desenvoltura na leitura indico os livros de Júlio José Chiavenato, Lourenço
Cazarré, Barioni Ortêncio, Lúcia Ramos, Lucília Junqueira de Almeida
Prado, Renato Pallottini, Jair Vitória, Luiz Galdino, além de outros livros
dos escritores e das escritoras acima com a mesma temática. São livros para
serem lidos em casa, dado o maior número de páginas que contêm. Estas
parcerias têm sido presença constante nesta prática, pela seriedade com que
incluíram a questão negra no seu discurso. É bem possível que eu tenha
omitido o nome de alguém que compartilha desta literatura, por falta de
conhecimento.
Outros temas dentro da literatura infanto-juvenil
Outros temas podem também ser discutidos com a mesma metodologia,
como a questão indígena, a ecologia, o gênero, a sexualidade. A oferta do
material produzido atende às minhas necessidades de facilitadora da Oficina,
é só passar um tempo nas livrarias e/ou bibliotecas.
Nesta altura o sonho real continua. Tenho trocado tal experiência com
outras pessoas que já multiplicaram-na além da região metropolitana do
Recife.
Uma liderança de uma das Comunidades Negras Rurais disse que, quando
se olhava, olhava o povo onde ela nasceu e vive, tinha um sentimento tão
estranho de anonimato que ela não sabe e não pode expressar, ainda hoje,
tamanho era o vazio existente. Ela não tinha nenhuma ponte que a ligasse
ao passado. Não tinha memória, não tinha identidade, avalia. No momento
em que ela, junto com dois ou três companheiros, pegaram um fio da meada,
a volta foi fantástica; atravessaram a ponte e tudo reconstituiu-se. Hoje ela
e muitos outros e muitas outras sabem de onde vieram e sabem para onde
vão. A história de vida agora é outra. Hoje lá se fala “o meu povo”.
Visitando as Comunidades Negras Rurais do Estado, ouvi pontos de
identificação em que, com um estímulo a mais, os fragmentos sedimentarão
os processos de identidade racial, fundamental para que cada população
tome às mãos o comando do seu destino histórico no mundo. Continuarei
com o sonho da construção da biblioteca em cada lugar onde não existe
uma.
Ao Professorado
A Oficina de Leitura apresentada não constitui uma receita para ser
seguida à risca. A criatividade de cada facilitador(a) pode movimentá-la como
desejar. O termo facilitador(a) é próprio para a prática porque a função é
tornar fáceis as questões que as crianças encontram na discussão. Para isso,
esta pessoa tem que ser ou estar livre dos estereótipos arraigados na sociedade
brasileira e que corroem como metástase o corpo da sua diversidade racial.
Uma Oficina não é suficiente para crianças brancas ou negras
reconhecerem-se como seres diferentes, com histórias diferentes, nem
superiores nem inferiores. Uma Oficina é um momento de reflexão que
deve ser bem conduzida pelo(a) facilitador(a), de modo que as crianças
saiam dela fortalecidas – e não envergonhadas, brancas ou negras – para
continuar uma convivência onde os estereótipos consigam ser corrigidos e
ambos os grupos vivam com mais saúde, livres do racismo, já que o racismo
destrói quem o manifesta e quem é vítima. Uma Oficina pode dar seqüência
a tantas outras, quando convier. Mãos às obras, literalmente!
Eu estou acordada, terminando o texto e quero fazer deste sonho uma
realidade, tão real quanto a minha memória e a minha identidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGR ̆FICAS
ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Ensaio para uma Literatura Infanto-
juvenil Libertadora. Recife, 1986, mímeo.
________. Cincos Cantigas para se Contar. Recife: Produção Alternativa,
1989.
________. Pai Adão Era Nagô. Produção Alternativa. Recife, 1989.
CARVALHO, Bárbara Vasconcelos de. A Literatura Infantil: visão histórica
e crítica. 5a edição. São Paulo: Global, 1987.
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil: teoria e prática. São
Paulo: Ática, 1983.
DISTANTE, Camelo. Memória e Identidade. In: Identidade e Memória.
Tempo Brasileiro,
no 95, Rio de Janeiro, out./dez de 1998.
ERIKSON, Erik H. Identidade, Juventude e Crise. 2a edição. Rio de Janeiro:
Zahar, 1976
MUSZKAT, Malvina. Consciência e Identidade. Série Princípios no73. São
Paulo: Ática, 1986.
PERROTI, Edmir. O Texto Sedutor na Literatura Infantil. São Paulo: Ícone,
1986.
ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura Infantil e Ideologia. São Paulo: Global,
1985.
SILVA, Ana Célia da. A Discriminação do Negro no Livro Didático.
Salvador: CEAO/UFBa,1995.
ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. 2a edição. São Paulo:
Global, 1982.
________; LAJOLO, Marisa. Literatura Infantil Brasileira. História e
Histórias. São Paulo: Ática, 1984.
123
Nenhum comentário:
Postar um comentário