quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O DIREITO À DIFERENÇA

Devemos respeitar as diferenças e valorizar a cultura afro, sobretudo, no espaço escolar. É necessário trabalhar essas questões na escola, fazer com que o aluno reflita sobre suas atitudes e passe a respeitar o outro. Com isso, podemos auxiliar na mudança social, pelo menos no que concerne ao nosso papel dentro de um espaço que deve respeitar a todos e ser livre de preconceitos, o espaço escolar.

"Saber respeitar as diferenças dos próximos é saber respeitar a si mesmo"
                                       Diogo de Los Antos

Michele Banfe    Secretária do Colégio Estadual Cristo Rei  Francisco Beltrão Paraná
Opinião sobre o texto a seguir 

                         O DIREITO À DIFERENÇA
                                                                     Glória Moura
    Professora do Departamento de Artes Cênicas e Coordenadora do Núcleo de Estudos
                                            Afro-Brasileiros da Universidade de Brasília
   Este artigo tem como objetivo repensar o papel da escola como
fonte de afirmação de identidades, à luz da experiência dos quilombos
contemporâneos. Considero um desafio desenvolver, na escola, novos
espaços pedagógicos que propiciem a valorização das múltiplas identidades
que integram a identidade do povo brasileiro, por meio de um currículo que
leve o aluno a conhecer suas origens e a se reconhecer como brasileiro.
   Pensar em tantos brasileiros que negam sua identidade, inclusive porque
a escola não lhes permitiu conhecer sua história e saber quem são, foi um
dos motivos para escrever este artigo. Além disso, a observação da realidade
social e educacional brasileira também pesou na escolha do tema. Constatar
que, pelos dados do último censo realizado pelo IBGE (Fundação Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística), 45% da população deste nosso
país é mestiça e que, integrando a maioria do povo trabalhador, está na
classe dos menos favorecidos, apesar da sua contribuição histórica para o
desenvolvimento econômico do país, e perceber, ademais, que a escola não
reconhece a diversidade da formação de seus alunos, não levando em conta
a experiência fora dela, instigou-me nessa tentativa de desvendar um aspecto
da história de nossos antepassados.
   Assim, com base em material recolhido nas comunidades de Santa Rosa
dos Pretos, situada no município de Itapecurumirim, Maranhão; de Mato
do Tição, em Jaboticatubas, Minas Gerais; e de Aguapé, no município de
Osório, Rio Grande do Sul, procurei recuperar e desvelar o universo dos
usos e costumes ali presentes, a dinâmica de criação e recriação da cultura
afro-brasileira, refletindo sobre o papel das festas e comemorações religiosas
nessas comunidades negras rurais como formadoras de identidade.
   Nas comunidades pesquisadas, a vivência da identidade contrastiva (que
se baseia na “cultura do contraste”), elaborada e apreendida mediante a
cultura da festa, faz com que os quilombolas afirmem vigorosamente sua
diferença e a reivindiquem enquanto direito, vivendo de seu trabalho, quase
sempre no campo e, concomitantemente, cantando, dançando, praticando
suas devoções, vivenciando sua fé. Em síntese, plantando seu alimento e
redistribuindo-o simbolicamente, junte com a alegria e a fé, em suas festas.
   O presente estudo procurou compreender a contribuição das festas dos
quilombos contemporâneos como fator formador e recriador de identidade,
analisando-as como veículo de transmissão e internalização de valores que
possibilitam a afirmação e a expressão da diferença/alteridade e, ao mesmo
tempo, a negociação dos termos de inserção das comunidades rurais negras
na sociedade como um todo.
   As crianças estão presentes em todas as tarefas comunitárias, do
planejamento à execução e avaliação das atividades, sempre ao redor dos
adultos, de ouvidos e olhos abertos, atentas, de uma maneira natural e
descontraída. A documentação fotográfica que acompanha este estudo nos
permite constatar a presença das crianças por toda a parte, participando da
preparação das festas ou, no contexto cotidiano, atuando ou observando. Esse
veículo de treinamento informal constrói um saber que vai sendo transmitido
e assimilado pouco a pouco, ao mesmo tempo em que proporciona
oportunidade de reflexão sobre a necessidade de mudança, sempre que as
circunstâncias o exigirem, para que a comunidade possa adequar-se às novas
condições do momento. Nas festas, os valores que a comunidade reputa
essenciais e que condensam esse saber são constantemente reafirmados e
renegociados, constituindo, assim, um currículo invisível por meio do qual
são transmitidas as normas do convívio comunitário. Sem uma intenção
explícita, esse currículo invisível vai sendo desenvolvido, dando às crianças
o necessário conhecimento de suas origens e do valor de seus antepassados,
mostrando quem é quem no presente e apontando para as perspectivas
futuras.
   Percebe-se, desse modo, a seriedade dos quilombolas na realização de suas
festas. Eles lutam para viver o momento presente, sem esquecer o passado e
com alegria. Não uma alegria descompromissada, descontextualizada, mas
uma alegria definitiva, duramente conquistada, buscada no mais recôndito
do ser. Porque as dificuldades estão presentes, não há que ir procurá-las em
outro lugar, mas as formas de ultrapassá-las é que estão sendo perseguidas.
                                      
Acredito que a maneira de manterem acesa a chama da vida passa pela
experiência de buscar a transcendência, o lado de lá da vida, para continuarem
lutando, do lado de cá, pela terra, pela comida, pela escola, pela moradia.
Passar a noite toda rezando, cantando e dançando é investir na vida, é se
embrenhar em uma outra dimensão que poderá e deverá ser a força que
nutre a vida mesma.
    Os moradores das comunidades têm princípios morais e normas de
conduta aceitos pela maioria e todos pretendem passar esse código aos mais
jovens. A importância dos rituais de devoção, o respeito à natureza, o dever
de trabalhar, o respeito à família, a beleza da negritude, a busca de um
casamento dentro do círculo comunitário, são valores que fazem parte de
padrões sociais que marcam as histórias de vida dos atuais moradores, bem
como dos seus antepassados, e perpassam as letras de músicas cantadas nas
festas e as estórias de santos e de bichos contadas exaustivamente.
    Não se pretende discutir aqui a natureza desses valores transmitidos
pelas festas, mas a sua importância para a comunidade. Há uma significação
positiva na contínua reafirmação desses valores e é a festa que potencializa o
seu significado, enquanto expressão de uma forma de pertencimento. Assim,
quando se fala na transmissão de valores que ocorre através das festas, não
se está pondo em questão o repertório valorativo dessas comunidades, mas,
antes, apontando para um modo de educação não formal que é utilizada
entre os moradores dos quilombos.
    A compreensão do sentido didático da realização das festas foi fundamental
para a abordagem educacional a que me propus, pois sabe-se da importância
da formação das identidades no processo de ensino/aprendizagem, sabendo-
se também, por outro lado, que isto raramente ocorre na escola tradicional.
A constatação de que o desenvolvimento do currículo invisível durante as
festas, realizado de uma maneira informal, marca indelevelmente a formação
da identidade dos moradores dos quilombos contemporâneos, ensejou
a reflexão sobre o aproveitamento dessa experiência na escola formal,
levando os alunos a conhecerem a história do país, que é sua história e a se
reconhecerem em sua formação étnica.
    A grande diferença que se deve destacar entre a transmissão do saber nas
comunidades negras rurais e nas escolas é que, no primeiro caso, o processo,
                                   
fruto da socialização, desenvolve-se de forma natural e informal e, no
segundo, o saber não está referenciado na experiência do aluno. Isso ocorre,
sobretudo, pelo fato de que a experiência educativa das comunidades leva
em conta os valores de sua própria história, enquanto na escola os valores
da cultura dominante, ou seja, o saber sistematizado, são impostos como
únicos, sem qualquer referência às historicidades vividas e aprendidas pelos
alunos em seu contexto de origem. Assim, a educação formal desagrega e
dificulta a construção de um sentimento de identificação, ao criar um sentido
de exclusão para o aluno, que não consegue ver qualquer relação entre os
conteúdos ensinados e sua própria experiência durante o desenvolvimento
do currículo, enquanto nas festas quilombolas as crianças se identificam
positivamente com tudo que está acontecendo a sua volta, como condição
de um saber que os forma para a vida.
    A pedagogia nos anos 70/80 já chamava a atenção dos educadores para a
experiência pedagógica que o aluno trazia de sua vivência fora da escola e que
não era por esta reconhecida, o saber que lhe foi transmitido por seus pais e
avós, pela comunidade onde mora, pela religião que seus pais adotam, pelas
leituras orientadas pela família, pela sua origem étnica. O currículo escolar
geralmente não leva em conta essa experiência do aluno e, ao impor-se como
única forma legítima de saber no interior do processo formal de educação,
acaba por esconder sob sua aparência de universalidade um outro currículo,
que Apple, estudioso da ideologia que atravessa o currículo escolar, chama
de currículo oculto: são as cadernetas de freqüência, os sinais de entrada
e saída que devem ser obedecidos, a disciplina imposta na sala de aula, o
sistema de recompensas e castigos, etc., que não são admitidos como parte
do currículo, embora toda a experiência escolar dos alunos, seja regida pelos
verdadeiros rituais que se organizam em torno destas formas de controle.
    É necessário deixar clara a diferença entre currículo invisível e currículo
oculto, conceito pedagógico sistematizado. O que chamamos de currículo
invisível é a transmissão dos valores, dos princípios de conduta e das normas
de convívio, ou, numa palavra, dos padrões sócio-culturais inerentes à vida
comunitária, de maneira informal e não explícita, permitindo uma afirmação
positiva da identidade dos membros de um grupo social. Essa transmissão
internalizada, que se desenvolve sob formas diversas, proporciona um
sentimento de pertencimento, ampliando-se gradualmente à medida que se
                                       
alarga a experiência do educando. Jovens e crianças reproduzem/recriam,
em sua experiência cotidiana, na vida familiar e nas celebrações grupais,
esses valores que são passados de geração a geração.
   Nos quilombos contemporâneos, a cultura da festa, que perpassa o seu
modo de vida, comanda o desenvolvimento lento do currículo invisível, por
meio do qual se dá a transmissão das tradições do grupo, constantemente
recriadas, reinventadas, ressemantizadas. Apreender a importância do período
de preparação e realização das festas permite desvendar a lógica desse modo
de vida quilombola e perceber, na indiferenciação lúdico-sagrada do tempo
da festa, as teias de significados que compõem um tecido cultural tramado
sobre essa urdidura bem firme. Desse modo, as festas permitem adequar
o passado ao presente, ao reelaborar a herança cultural dos ancestrais,
possibilitando, além disso, manter um diálogo com a sociedade envolvente,
através da negociação e renegociação constante dos referenciais simbólicos,
dos quais essas comunidades se apropriam para constantemente ressignificá-
los.
   Nas comunidades rurais negras é na festa que os valores vão sendo
transmitidos, no desenvolvimento deste currículo invisível que ninguém
descreveria em detalhes, mas cujas marcas é possível detectar nas formas de
participação das crianças e dos jovens. Ninguém parou para lhes dar aulas
sobre o ritual envolvido em determinada celebração ou sobre os papéis a
serem nele desempenhados, mas todos sabem muito bem o que têm de fazer,
a hora em que têm de fazer e como devem fazê-lo. Os papéis, bem como os
valores e as tradições que por meio deles se encarnam, vão sendo definidos
com o passar dos anos, e por isso a aprendizagem é constante. Levantar às 5
horas da manhã para participar da alvorada da Santa Cruz, na comunidade
de Mato do Tição, quando se reza diante da cruz enfeitada colocada em
frente a cada uma das casas da comunidade, é algo que não precisa ser
ensinado. A distribuição, nessas ocasiões, de pelo menos um cafezinho e, às
vezes, de bolinhos fritos na hora, expressa o valor de uma tradição poderosa,
a exigir, em contrapartida, a troca na reciprocidade.
   A construção desse currículo invisível constitui assim um processo
histórico no qual a linguagem e, em especial, as linguagens musicais e
corporais, desempenham um papel essencial, remetendo a uma história de
                                     
longa duração. Por isso, são as festas que potencializam, dão movimento
e vida a esses valores transmitidos ao longo do tempo e recriados face às
exigências do presente.
    É na cultura da festa que, pela exposição condensada e reiterada desses
valores, se explicita o currículo invisível que essas comunidades constroem
para si mesmas, e que vai despertando nas crianças e nos jovens a vontade de
continuar a manter a identidade que lhes confere sua cultura e, ao mesmo
tempo, nela desenvolver novos aspectos. No Rio Grande do Sul, os jovens
consideram muito importante participar do maçambique (auto popular que
encena a história da Rainha Jinga de Angola), conhecer todas as letras das
músicas, mas também lutam para fazer incorporar à tradição as músicas por
eles mesmos criadas. É a nova geração buscando a sua participação efetiva
sem, contudo, desrespeitar a ancestralidade.
    Por outro lado, esse currículo invisível, no qual a história oral tem um
papel preponderante, impregnando a experiência de vida dos membros
da comunidade, se projeta também para fora dela. Assim, Elizângela
Conceição de Siqueira, neta de D. Divina, líder da comunidade de Mato do
Tição, descreve a história de seu bairro, cumprindo uma tarefa exigida pela
professora do Grupo Escolar:
    “Fundador do bairro: Benjamin José de Siqueira.
    Origem do nome: Porque antigamente não tinha luz elétrica. Quem tinha
que andar à noite tinha que acender um pau de lenha, para sair sacudindo
ele para clarear o caminho para passar. Por isso se deu o nome de Mato do
Tição.
    O bairro recebeu esse nome no dia: Não sei responder porque quando
minha avó nasceu, segundo ela já existia este nome. Isso se deu a origem no
tempo da escravidão”.
    Em outra ocasião, em carta dirigida à pesquisadora, a mesma Elizângela
falaria sobre a comunidade em que vive e sobre suas aspirações atuais:
    “É um momento de alegria quando eu entendia conhecer esse cantinho
amado.
                                       
   Cheio de esperança: esperando tudo de bom que podemos. Encontrar
dentro do meu coração: charmosa tenho a minha vovozinha para me
orientar. Tem meu avô Joãozinho para me abençoar. Meu pai e minha
mãezinha com todo o povo do meu coração vivo feliz aqui em Mato do
Tição: terra cativante.
   Vivo nela constante. Aqui neste Brasil. Esperando de encontrar um dia
uma linha de ônibus, para ser nossa alegria.
   Um beijinho, um beijão do povo de Mato do Tição que eu quero cantar
e quero dançar que uma escola para mim estudar.
   D. Gloria foi um prazer conhecer a senhora e suas amigas. Um beijo de
sua amiga Elizângela Conceição de Siqueira”.
   Esta carta mostra bem como são passados os valores de respeito à
liderança da avó e aos mais velhos, bem como o amor à terra em que vivem,
mas também deixa entrever as angústias e os desejos que impulsionam os
mais jovens, evidenciando as relações da comunidade com a sociedade
abrangente. E, nesta, a escola tem um papel fundamental: Elizângela quer
ônibus para ir para à escola – a atual dista quatro quilômetros de Mato do
Tição – mas quer sobretudo uma escola sua, da comunidade, onde suas
diferenças sejam respeitadas. Como pode a escola enfrentar o desafio de
atender a reivindicação tão justa e claramente formulada por esta criança?
No desenvolvimento do currículo escolar, não é o caso, evidentemente, de
se incorporar de forma imediata e sem crítica todo e qualquer conteúdo
disciplinar ou universo de valores que o aluno já carrega através desse outro
currículo em que foi formado por sua socialização. Nem se trata de deixar
o aluno à mercê do que deseja fazer, de forma espontaneísta, permitindo-
lhe permanecer encerrado no seu próprio universo, restrito de socialização,
pois a escola, enquanto instituição socializadora, tem também o dever de
propiciar uma ampliação de seu horizonte de experiência, com base em
valores hoje inquestionáveis como o respeito aos direitos humanos e aos
ideais republicanos e democráticos, que orientam – ou devem orientar – o
desenvolvimento da sociedade brasileira. E a escola tem ainda a função a
partir dos valores especificamente pedagógicos que orientam sua prática, de
ampliar e aprofundar no aluno o seu processo de aquisição de conhecimentos,
como espaço de escolarização que é.
                                     
    O que se propõe, em contrapartida, é o respeito às matrizes culturais a
partir das quais se constrói a identidade dos alunos, com, atenção voltada
para tudo aquilo que vá resgatar suas origens e sua história (o que também
significa respeitar os direitos humanos!), como condição de afirmação de
sua dignidade enquanto pessoa, e da especificidade da herança cultural que
ele carrega, como parte da infinita diversidade que constitui a riqueza do ser
humano. Este é um valor que se revela essencial numa sociedade marcada
simultaneamente por uma formação pluriétnica e pelo peso da herança
escravocrata.
    Não se está advogando, portanto, o desprezo da cultura universal,
patrimônio comum de toda a humanidade, mas sugerindo seguir o exemplo
do que ocorre nas comunidades negras estudadas, isto é, levar em conta o
contexto cultural onde a escola está inserida e, a partir daí, possibilitar que
se amplie paulatinamente o universo da experiência e a visão de mundo dos
alunos, para que possam ter acesso à universalização do saber. Considerando-
se que os estudiosos da formação histórica da sociedade brasileira insistem
em destacar a contribuição dos grupos étnicos distintos que nela tomaram
parte – em especial as “três raças formadoras” – essa realidade deveria
inquestionavelmente ser levada em consideração nos currículos escolares.
    Como a democracia é, ao mesmo tempo, fundamento e finalidade do
exercício da cidadania, a educação deve proporcionar a formação de cidadãos
que respeitem a diferença e que, sem perder de vista o caráter universal do
saber e a dimensão nacional de sua identidade, tenham garantido o direito
à memória e ao conhecimento de sua história.
    Esta educação, profundamente vinculada às matrizes culturais
diversificadas que fazem parte da formação da nossa identidade
nacional, deve permitir aos alunos respeitar os valores positivos que
emergem do confronto dessas diferenças, possibilitando-lhes ao mesmo
tempo desativar a carga negativa e eivada de preconceitos que marca
a visão discriminatória de grupos sociais, com base em sua origem
étnica, suas crenças religiosas ou suas práticas culturais. Só assim a
escola poderá, levando em consideração as diferenças étnicas de seus
alunos, reconhecer de forma integral os valores culturais que carregam
consigo para integrá-los à sua educação formal. Isto é essencial no caso
                                      
de grupos que, por força da inércia da herança histórica ou pela pura
força do preconceito, são quase sempre considerados “inferiores”, ou
“naturalmente” subalternos.
   No caso das populações afro-brasileiras, esta é uma tarefa urgente.
Em certa ocasião, quando trabalhava para a Secretaria da Cultura do
Ministério da Educação, vivi uma experiência significativa numa sala de
aula de uma escola municipal de Itabuna, no estado da Bahia: embora ali
todos os alunos fossem negros, à pergunta sobre quem era negro naquela
sala, ninguém se identificou como tal, evidenciando-se o afastamento
existente entre o que cada um é aos olhos dos outros e as representações
que cada um tem sobre si mesmo. Isto mostra também como esta forma
de identificação – ser negro – não é afirmada positivamente. Em outra
ocasião, quando estive na escola de Jaboticatubas, freqüentada pelas
crianças da comunidade de Mato do Tição, soube de outro caso exemplar,
quando uma professora passou um exercício em que cada aluno devia
se identificar como negro ou branco. Frente à tarefa, uma menina negra
de Mato do Tição se identificou como branca e foi “denunciada” pelo
colega do lado, o que fez com que ela caísse em pranto convulsivo.
   Assim, enquanto em sua própria comunidade o ser negro é um valor
positivo, celebrado em todas as festas quilombolas e passado através das
gerações às crianças e aos jovens, no ambiente escolar esta criança se
sentiu intimidada o suficiente para negar o que, em outras circunstâncias,
poderia ter orgulho de afirmar, evidenciando o quanto a carga negativa
do preconceito que perpassa a educação formal pode ter um efeito
desagregador da identidade mesmo para crianças que, como as de Mato
do Tição, têm, por outro lado, nas práticas comunitárias, um enorme
reforço identitário positivo.
   Nessa escola de Jaboticatubas – a mesma freqüentada por Elizângela
– os professores seguem a orientação da Secretaria de Educação do
Estado de Minas Gerais quanto ao trabalho com Conteúdos Básicos do
Ciclo Básico de Alfabetização à Quarta Série do Ensino Fundamental, e
recebem treinamento para aplicar suas diretrizes. Participei de uma parte
desse treinamento de professores e senti a dificuldade que demonstravam
em assimilar idéias que não constavam do programa curricular, ou
                                     
seja, qualquer idéia nova que possa trazer o risco de abalar, ainda que
minimamente, o sólido edifício da educação formal e oficial.
   Na verdade, o Brasil nos oferece a estranha imagem de um país de
identidade inconclusa, já que, ao longo da história de nossa formação,
continuamos a nos perguntar a todo momento sobre quem somos e, assim,
o brasileiro, por falta de conhecer melhor a sua história, acaba por não
ter condições de se identificar consigo mesmo. Na verdade, na escola é
negado ao estudante o conhecimento de uma história que efetivamente
incorporasse a contribuição dos diferentes estoques étnicos à formação de
nossa identidade, com o agravante de que a história parcial ali apresentada
como exclusiva é aquela dos vencedores, dos colonizadores ou, para precisar
a afirmativa, história celebratória das classes econômica e politicamente mais
bem sucedidas. Isto porque – e este é outro aspecto a ser considerado – a
história transmitida na escola privilegia apenas o registro escrito, quando se
sabe que a história dos grupos indígenas ou das comunidades negras rurais,
como aliás também toda e qualquer história local, é sempre um relato oral,
que só pode ser transmitido pelos mais velhos aos mais novos, através das
gerações.
   O estudo das festas nas comunidades negras rurais evidencia a importância
da cultura de que elas são depositárias na formação do ethos do brasileiro.
Haveria assim que se buscar meios através dos quais fosse possível conhecer
essa realidade histórica, social e cultural dos afro-descendentes, ensejando
que alunos e professores da rede oficial e particular de ensino, frente ao
conhecimento dessa outra história, pudessem enfim se identificar consigo
mesmos, contribuindo, dessa forma, para a abertura de novas perspectivas
no campo educacional.
   Compreender e respeitar o saber que se condensa nas culturas populares
revelaria, então, sua extrema importância como instrumentos de decifração
dos pilares em que se assenta nossa formação. A cultura, enquanto universo
simbólico através do qual se atribui significado à experiência de vida,
orienta todos os processos de criação do homem, não só no domínio das
artes, mas também no que o homem aprende ao longo de sua existência,
acrescentando-se ao que já sabe por herança dos antepassados, como sua visão
de mundo. Nas comunidades rurais negras, o uso das ervas medicinais, o
                                     
modo de trabalhar a terra, de tirar dela seu sustento, as linguagens gestuais, a
música, as festas, o modo de se divertir e o de morrer, cantar, dançar e rezar
constituem o contexto onde se tecem as teias de significados que recriam
incessantemente sua cultura e sua identidade contrastiva. Nas práticas dos
moradores das comunidades, há um forte apelo ao reconhecimento dessa
identidade como parte do grande mosaico através do qual se constrói a
identidade nacional.
    Nestas considerações finais, quero enfatizar o descaso da escola pelo
reconhecimento das múltiplas “identidades” e pelas diferentes culturas
dos diversos segmentos que historicamente integraram a formação de
nosso país, como tarefa indispensável de formação para o exercício da
cidadania. Essa multiplicidade de raízes da nossa formação cultural não
pode ser desconsiderada, sob pena de se priorizar apenas a visão de mundo
de um daqueles segmentos, à exclusão de todos os outros. Pretendo, com
este trabalho, chamar a atenção para a importância da diversidade e a
necessidade do respeito às diferentes vertentes sócio-históricas e culturais
que confluem na construção deste nosso país, como base para uma revisão
em profundidade das práticas pedagógicas escolares, onde política, educação
e cultura já não possam mais ser separadas.
    A escola não leva em conta o saber diferenciado que o aluno pode trazer
da vivência no seio de sua família, aprendido com seus pais e avós ou
no seu meio social de origem. Assim, ela desconhece a origem étnica dos
alunos e a formação cultural de sua clientela. Mais ainda, a hegemonia
desse modelo exclusivo tem conseqüências que se estendem por todo o
sistema educacional. A escola não prepara para a vida, na medida em que
não proporciona uma formação profissional diversificada, mas faz com que
todos queiram ser doutores, herança portuguesa do Brasil-colônia, quando
o bacharel tinha regalias na Corte.
    Implantar um currículo capaz de responder às especificidades que
apontamos e, ao mesmo tempo, escapar das armadilhas que nelas se
encerram, exigiria que os futuros professores recebessem uma formação que
os capacitasse a lidar com as questões educacionais. Só a partir da formação
de professores capacitados a criar, levantar possibilidades, inventar novas
situações de aprendizagem em sala de aula, frente à especificidade do
                                       
contexto em que conduz o processo de ensino-aprendizagem, imbuídos do
sentido de sua profissão e de sua responsabilidade na sociedade, poder-se-á
desenvolver um processo escolar de educação consoante à realidade sócio-
cultural brasileira.
    Em suas múltiplas variedades, o saber que se condensa nas culturas
populares é um importante fator de afirmação da identidade do homem
brasileiro, porque carrega consigo a memória de uma parte significativa da
história deste país. No entanto, reduzido à condição de folclore (com toda
a carga pejorativa que o termo traz em si), torna-se praticamente impossível
levá-lo em conta, perdendo-se grande oportunidade de aproximação da
realidade do país com o que se ensina na escola.
    Os produtos resultantes de trabalhos de pesquisa (vídeos, publicações,
áudio-visuais, etc.), assim como inúmeros outros materiais existentes e
pouco divulgados – a exemplo dos trabalhos da FUNARTE (Fundação
Nacional de Arte do Ministério da Cultura) – poderiam ser utilizados com
proveito nas escolas, com o objetivo de levar os professores a ter uma visão
mais abrangente da sociedade e da cultura brasileira e, portanto, uma visão
crítica da escola atual. Instigar e informar os mestres quanto à sua história
e à sua identidade é um começo de caminho para se mudar o panorama
educacional. Os professores precisariam se reconhecer no que ensinam,
conscientizando-se da formação pluriétnica do povo brasileiro e aceitando
suas próprias origens, para que pudessem ensejar um processo educativo
na escola mais adaptado à realidade nacional, levando os alunos a também
desenvolver uma atitude afirmativa com relação à sua própria identidade.
    Deste modo, se quisermos aproveitar a experiência de transmissão de
valores observada no currículo invisível das festas nas comunidades negras
rurais para a reformulação do currículo escolar e a renovação do processo
de ensino-aprendizagem nas escolas, seria necessário trabalhar em três
diferentes níveis, que assim ficam registrados como sugestões de intervenção
possível para os educadores deste imenso país:
    . mudar a perspectiva ideológica da formulação de currículos –
necessariamente sempre no plural – levando em conta os valores culturais
dos alunos e da comunidade onde a escola está inserida;
                                      
    . cultivar uma postura de abertura ao novo para ser capaz de absorver
mudanças e reconhecer a importância da afirmação da identidade, levando
em conta os valores culturais dos aluno e respeitando a história de seu
grupo étnico/social;
    . utilizar os resultados e produtos de pesquisas realizadas na. universidades,
para ampliar a própria formação e, ao mesmo tempo, ter acesso a um
material didático que se aproxime da realidade diversificada da experiência
dos alunos.
    Há necessidade imperativa de se tornar a escola mais próxima da realidade
sócio-cultural de seus alunos, levando em conta os valores culturais locais
numa perspectiva universal, se se quiser formar cidadãos capazes de construir
a sua própria história, num Brasil plural e verdadeiramente democrático.
    Viver a aventura dessa pesquisa nos quilombos contemporâneos foi uma
oportunidade de aprender uma outra dimensão da experiência humana
até então para mim desconhecida. Aprender que é necessário tão pouco
materialmente para viver uma vida espiritual tão rica, me levou a repensar
os valores da sociedade em que vivemos. Mas o aspecto mais importante da
vivência com os moradores das comunidades rurais negras foi aprender a
importância e o significado da identidade afirmativa que eles conquistaram
e de que não abrem mão. Eles sabem quem são e sabem o que querem. Viver
sua cultura, manter sua integridade de seres humanos e de cidadãos capazes
de lutar com todas as forças para dignificar sua vida, recriando sua cultura,
seja lutando para manter sua terra, seja tocando seus tambores, respeitando
a tradição de seus antepassados, dançando e cantando, e fazendo da festa
negra a alegria de festejar a vida. Aprendi com os quilombolas que festejar é
preciso, que rezar é preciso, que lutar pelas coisas consideradas importantes
para manter seus valores é preciso. Quanto esse aprendizado me fez recuperar
o sentido de minhas origens e retomar as possibilidades de continuar a viver
de forma a afirmar uma identidade positiva, para mim e todos os meus! Que
o sonho dos professores mestiços desses brasis longínquos possa se realizar
na conquista de uma escola onde os alunos sejam valorizados e respeitados,
apesar das suas diferenças de origem e cultura - ou antes, por causa delas.
                                          

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