Projeto A Cor da Cultura
Num mundo de grandes desigualdades, nem sempre é fácil lidar com a diferença. Ela está em toda parte. Por vezes, é mais simples percebê-la quando a questão envolve apenas dois times de futebol, duas religiões, dois partidos políticos, duas formas de agir. Na abordagem de temas mais complexos, ou
simplesmente se a proposta exige um exercício crítico rigoroso, podemos di-zer que, mesmo entre os mais semelhantes, habitam numerosas diferenças – afinal, cada ser humano é único no conjunto de suas características.
Viver em sociedade implica a necessidade de uma postura em relação às di-ferenças – essa tende a ser uma condição comum até para quem busca com-preender a ética ou a justiça. Mas, e quando as diferenças não são perceptíveis? Ou melhor, o que ocorre quando, em vez de reconhecê-las (e valorizá-las), passamos ao largo e assumimos o posicionamento de quem prefere fin-gir que elas não existem?
Em primeiro lugar, para que um assunto gere discussão e divergência, é preciso que ele seja abordado. Do contrário, a tendência é supormos que o nosso ponto de vista é o único correto. Mais que isso: quando atribuímos juízo de valor às semelhanças e às diferenças, perdemos de vista o que elas podem proporcionar de melhor para uma compreensão mais apurada do mundo em que vivemos. Não deixar que elas se revelem é negar uma pos-sibilidade essencial para a transformação da sociedade: a partir dessa per-cepção, reformulamos nosso modo de ver as coisas do mundo e, por con-seqüência, o próprio mundo. Esse seria o papel do verdadeiro cidadão, ou seja, descobrir que tipo de conseqüência tem origem no ato de interpretar o mundo, de uma forma ou de outra. Com essa visão, a descoberta das di-ferenças pode ser uma experiência enriquecedora.
Um olhar sobre a diversidade
A nossa proposta é compreender a diferença como diversidade e trabalhar
em torno do binômio informação-educação, entendendo que ele represen-ta mais do que produzir bons conteúdos culturais para a televisão. Consi-deramos o uso da TV com propósitos educacionais, buscando ampliar o acesso ao conhecimento. No entanto, manter tal compromisso com o teles-pectador implica evitar “respostas prontas” e permitir que ele formule suas próprias questões. De acordo com propostas pedagógicas contemporâneas, seria algo semelhante ao professor que vai além de simplesmente transmitir
seu conhecimento ao aluno, e que compreende que o estudante também possui um saber – local, cultural, afetivo, profissional –, entre tantos. Por isso, é importante falar das diferenças e procurar entender sua potencial contribuição para a sociedade. O projeto A Cor da Culturaquer abrir espaço para que seus diversos públicos construam por conta própria os ali-cerces de seu conhecimento.
Paulo Freire nos ensina que a visão do educador deve, necessariamente, respeitar o educando, ou seja, “ensinar exige reconhecimento e assunção da identidade cultural”. A valorização do outro, de suas experi-ências, de seu espaço e cultura, é prioridade do projeto A Cor da Cultura, que pretende incluir na programação da TV um pouco da história, das vivências e da riqueza cultural do negro, recuperando temas e promovendo discussões que deveriam fazer parte do dia-a-dia da sociedade. A intenção é chamar a atenção para o fato de que a presença do afro-descendente na mídia e o acesso à informação sobre o patrimônio cultural produzido pelo negro não correspondem à sua participação demográfica. Vivendo num país em que quase metade da população é afro-descendente, é incompreensível que os meios de comunicação negligenciem sua atuação como protagonista da vida social brasileira, atribuin-do-lhe papel de coadjuvante.
A História oficial relegou aos negros um papel secundário, dificultando o caminho em direção à sua inclusão social e criando um estado de desigual-dade difícil de ser alterado. Difícil, mas não impossível.
O primeiro passo para mudar esse quadro é o entendimento de que há, sim, uma discriminação racial. Ela acontece ora de maneira mais explícita, como nas piadas, ora de forma mais velada. O número reduzido de negros ocupando os cargos mais altos das empresas é um bom exemplo. De um modo ou de outro, a ação silenciosa do preconceito tem mantido os índices de desigualdade em patamares inaceitáveis para um país que se pretende democrático. De posse dos números e observando a realidade com alguma
isenção, devemos deixar de lado o mito de que as condições são iguais.
Vale ressaltar que a desigualdade não se reflete apenas nos indicadores sociais ou nos desníveis de renda: essa é a expressão mais evidente do racismo. Ela evidencia uma estrutura cultural e social que acaba por masca-rar uma discriminação mais profunda: a desvalorização, desumanização e desqualificação, ou o não-reconhecimento simbólico das tradições, saberes fazeres do povo afro-descendente.
Devemos levar em conta que tal desigualdade não é exclusiva com relação aos afro-descendentes: outros grupos étnicos, raciais ou religiosos padecem com essa estrutura excludente, no Brasil e no mundo.
Baseados nesses fatos, devemos nos perguntar: o que é preciso fazer para minimizar as diferenças no desenvolvimento social?
Mudanças não se processam da noite para o dia, nem tampouco sem o en-volvimento de parte expressiva da população. Para estabelecer o equilíbrio nessas relações, é necessária a participação de vários setores da sociedade civil, governos, ONGs e, principalmente, veículos de comunicação. Não se
pode esquecer que, historicamente, a mídia, de maneira geral, sempre pro-duziu conteúdo identificado com critérios e valores europeus, levando a a “escassez de respeito e ao déficit de reconhecimento
da civilização e da população descendente de africanos”, no dizer do professor Julio Cesar de Tavares. Basta percorrer a programa-ção da TV, freqüentar as redações de jornais e revistas, analisar seu conteú-do, buscar referências sobre temas ou assuntos vinculados à cultura negra para constatar que os afro-descendentes não estão representados de acordo com a sua presença numérica e simbólica na nossa sociedade. Chega-se à conclusão de que os veículos não sabem lidar com a diferença; então se tem
uma comunicação influenciada ideologicamente, ainda que de maneira su-til. O pior resultado dessa prática é o racismo.
Eis aqui uma questão realmente fundamental para se discutir nas salas de aula. A influência dos veículos de comunicação sobre a forma de ser, pensar e agir dos indivíduos tem sido estudada pelo menos nos últimos 80 anos.
Em maior ou menor grau, é certo que a mídia influencia a maneira pela qual as pessoas percebem e representam o mundo. Muitas vezes, o fato de algo estar na TV, no jornal ou no rádio faz com que as pessoas acreditem que seja real. É como se, para ser verdade, fosse preciso estar na mídia.
A ausência quase total de protagonistas negros influencia a forma de as pes-soas verem a realidade. Quando se observa que o negro só aparece como coadjuvante ou com sua imagem vinculada a algo negativo, seja na novela da TV ou na matéria do jornal, compreende-se como a mídia pode influenciar
a maneira de as pessoas entenderem as relações dos grupos étnicos na sociedade, perpetuando os preconceitos. A representação do negro – ou a ausência dela –, seguindo os padrões que o colocam em posições subalternas, faz com que grande parte da sociedade reproduza as “vozes do racismo”. Sabe-mos que a mídia atua como moduladora dos acontecimentos, na medida em que os agenda, referencia as fontes, seleciona as falas, normatiza a gramáti-ca cultural utilizada e produz os sentidos que influenciam na construção da realidade e na forma de o sujeito se relacionar com o mundo.
Para fugir desse roteiro tradicional, promover de fato a inclusão do negro no conteúdo dos veículos de comunicação e evitar a chamada desqualificação de sua identidade cultural, o projeto A Cor da Cultura ganhou forma em diferentes produções audiovisuais do Canal Futura, exibidas também na TV
Globo e na TVE. Ao todo, são cinco programas, divididos em 56 episódios.
Livros Animados traz para a tela da TV obras de literatura infantil ilustradas, conferindo movimento às narrativas através de recursos de computação gráfica. As histórias são voltadas para o público de 5 a 10 anos e procuram discutir temas como multiculturalismo, identidade, memória e etnia. Como critério, entre outros, está a necessidade de evidenciar a contribuição do negro, seja no ato de criação do livro ou na temática. A proposta é elaborada no sentido de restituir ao afro-descendente a possibilidade de elevar sua auto-estima, com produtos audiovisuais ricos em termos de ludicidade.
No programa Nota 10 – Especial – A Cor da Cultura,a realidade da sala de aula é o pano de fundo para discussões cujo fio condutor é sempre um tema ligado à Educação. O propósito fundamental da série aponta para a reflexão de alunos e professores sobre a diferença, reproduzindo muitas vezes situações corriqueiras do dia-a-dia da escola. Os assuntos abordados vão da representação do negro nos materiais didáticos utilizados nos colégios à religiosidade de origem africana. A partir desses conteúdos, pode haver o debate sobre como o preconceito é naturalizado, permitindo enxergar (talvez) formas não-explícitas de exclusão.
O interprograma, como o nome sugere, ocupa o espaço entre duas atrações de maior duração. Heróis de Todo Mundo é a prova de que, mesmo de forma reduzida, é possível contar uma história de modo sedutor e educativo. Os episódios percorrem a vida de grandes personagens negros do passado que se desta-caram em suas áreas de atuação. Eles são representados por personalidades da atualidade, cujas carreiras, de alguma forma, influenciaram. Se a heroicida-de contribui para a identificação do homem, projetando sua auto-estima, esses interprogramas ainda permitem recuperar aspectos históricos importantes para ajudar o telespectador a redesenhar sua visão sobre os mitos de umas sociedade, indo além das figuras genuinamente ligadas aos valores europeus.
Ação é o programa que pretende evidenciar iniciativas de cunho social,promovidas por instituições sem fins lucrativos, voluntários e organizações ão-governamentais de natureza diversa. As discussões giram em torno de como a sociedade pode se transformar no curto, médio e longo prazo,a partir da ação responsável de grupos ou indivíduos. No caso, os programas especiais criados para o projeto A Cor da Cultura abordam a contribuição cultural de ONGs, como o Projeto Sonho dos Erês e a Escola Criativa do Olodum, para a valorização da identidade do afro-descendente e sua melhor inclusão social.
Completa a série de programas Mojubá, conjunto de documentários sobre a religiosidade de matriz africana e sua penetração nas crenças e na própria cultura brasileira, em perspectiva histórica, social e etnográfica. A féé revelada como instrumento de resistência, componente da História e da identidade cultural; através dela, vemos como nosso cotidiano foi enriquecido pela tradição religiosa africana e percebemos que a distância que separa continentes não afasta culturas.
Em outro plano do trabalho, o projeto A Cor da Cultura prevê uma série de atividades com o objetivo de tornar acessíveis às escolas o conteúdo dos programas. A idéia é criar um espaço de discussão entre alunos e professo-res sobre as questões ligadas à participação social dos descendentes de africanos, à discriminação que assume a feição do racismo, à valorização das formas de expressão do negro, entre outros assuntos. Essa iniciativa atende aos propósitos da Lei nº 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e cultura afro-brasileira e africana na Educação Básica. Considerando a importância do tema para interferir no processo de produção de desigualdades étnico-raciais e de racismo, o projeto A Cor da Cultura espera incluir o assunto na agenda de discussão das escolas. Levando-se em conta que o movimento precisa ser coletivo, a expectativa é de que esse trabalho se desenvolva nas escolas, ecoando para os demais espaços sociais e disseminando valores mais igualitários.
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