terça-feira, 25 de setembro de 2012

1ª menina negra em um colégio de Charlote

LUCIANA COELHO ENVIADA ESPECIAL A CHARLOTTE, CAROLINA DO NORTE

Dorothy Counts tinha 15 anos quando se tornou a primeira menina negra
no colégio Harding, em Charlotte, sul dos EUA. Era 4 de setembro de
1957, e a cidade tentava a integração racial.

Por cinco dias, ela resistiu a pedras, cuspe e insultos. A provação a
levaria a dedicar a vida à educação e viraria uma das imagens mais
poderosas na luta por direitos civis que culminaria em Barack Obama.

Eu ainda lembro daqueles dias. Tinha 15 anos, mas não é algo que vá
esquecer. É parte da minha vida.

Antes daquele dia, minha família teve uma discussão sobre eu entrar em
Harding. Meus pais inscreveram eu e dois dos meus três irmãos, mas só
eu fui escolhida ?meu irmão [mais velho] foi para a Escola Central de
Charlotte.

Foram cinco famílias escolhidas; quatro decidiram ir adiante. Eu era a
única menina [negra] em Harding.

Meu pai era professor na Universidade Johnson C. Smith
[majoritariamente negra] e pastor. Minha mãe se formou na faculdade
mas era dona de casa, e na minha adolescência foi supervisora de um
dormitório escolar.

Durante anos, conversamos sobre uma boa educação, algo muito
importante na minha família, e igualdade. Quando eles foram abordados
para nos inscrever, hesitaram, mas conversaram conosco sobre o que
aconteceria. Era parte de um processo, sabíamos que alguém tinha de
fazer, e avançamos.

Eu tinha ido a uma conferência mundial da juventude presbiteriana em
Iowa, e tinha sido boa uma boa experiência, a minha primeira em um
mundo não-segregado.

Por isso, quando voltei e soube que tinha sido aceita em Harding, não
pensei muito a respeito. Mas coisas tinham ocorrido antes do primeiro
dia de aula, e meus pais não me contaram, porque não queriam que eu
chegasse à escola com medo. Falamos só sobre como eu devia me
comportar.

O PRIMEIRO DIA

Quando meu pai me levou naquela manhã, um de seus amigos da
universidade, o dr. Thompson, nos acompanhou? é ele, naquela foto [a
icônica foto em que Dorothy é cercada por colegas agressores]. A rua
estava bloqueada, e meu pai tinha ido procurar onde estacionar. Quando
eu vi toda aquela gente, não pensei no que poderia acontecer. Eles
tinham sabido pelo jornal que quatro estudantes [negros] tinham sido
selecionados para escolas predominantemente brancas.

Douglas Martin ? 5.set.1957/Associated Press
[image: Dorothy Counts, aos 15, a primeira estudante negra a
frequentar o colégio Harding, em Charlotte]
Dorothy Counts, aos 15, a primeira estudante negra a frequentar o
colégio Harding, em Charlotte, Carolina do Norte

Em Harding havia uma mulher que fundou um tal de Conselho Branco e que
pediu às pessoas que impedissem que a integração acontecesse. Ela
estava lá no meu primeiro dia, e ela incentivou os alunos a me
impedirem de entrar, a me cuspirem. Na foto não há só alunos, há
adultos. E há crianças menores que foram lá só para isso.

Mas por causa das conversas como meus pais, meus avós, eu sabia que
estava lá por uma razão. Mantive minha cabeça erguida e entrei.

Os alunos fizeram o que a mulher pediu. Eram adolescentes, quando
começam é difícil parar. Quando entrei, sentei sozinha no auditório.
Muito do que fizeram comigo foi pelas minhas costas. Ninguém me
orientou. Eu então fui chamada a sentar com os colegas da minha
classe, mas não teve nenhuma orientação especial da diretoria.

Não houve preparação da diretoria para aquele dia, e isso fez
diferença [em relação a outras escolas integradas].

O diretor tinha dito ao meu pai que não sabia o que aconteceria
comigo. Ele nunca fez nada, mesmo vendo o que acontecia. Meu armário
era perto da sala dele, e muita coisa me aconteceu naquele corredor.
Ele nunca interveio.

Nem os professores. O lugar que me coube foi no fundo da sala. Eu
levantava a mão, ninguém me chamava. Eu não sabia o porquê.

CINCO DIAS

Fiquei lá quatro dias ?na verdade, cinco. Em cada um deles, ao voltar
para casa, meus pais me perguntavam como tinha sido, eu lhes relatava,
e meu pai me perguntava se eu queria voltar.

Eu dizia que sim, pois achava que o dia seguinte seria melhor e
perceberiam que eu era como eles, só a cor da pele era outra. Só uma
adolescente que queria estudar.

No meu penúltimo dia, aconteceu um incidente na cantina. Fui cercada
por uns garotos que cuspiram na minha comida. Naquele dia, perguntei
aos meus pais se eles poderiam passar a me buscar para almoçar em
casa, já que a escola permitia.

Mas quando estava mexendo no meu armário, pela primeira vez, eu senti
a violência física. Empurrões e xingamentos eu podia aguentar. Mas ali
senti algo me atingir nas costas e na nuca. Nas costas foi um
apagador; na cabeça eu não sei. Mas era afiado.

Na saída, vi meu irmão esperando no carro e, pela primeira vez, tive
medo. O vidro de trás estava estilhaçado.

Aí percebi que não era só eu o alvo, era minha família.

Contei naquele dia aos meus pais o acontecido. Meu pai disse que sabia
o que eu responderia, e ligou para a polícia e para o superintendente
das escolas. Isso provavelmente foi o que o levou a me tirar de
Harding, porque o superintendente lhe disse que não estava sabendo de
nada, que indagara à escola e ninguém lhe dissera que eu tinha tido
problemas.

Eu estava lá para receber educação, e não era isso que estava acontecendo.

SEGREGAÇÃO

Em Charlotte, havia segregação. Sentíamos no dia-a-dia, mas era a
norma. Crescemos assim. Não questionávamos. É irônico, porque eu
morava nesse bairro [formado principalmente pelas famílias de
professores negros da universidade], não muito longe desta casa ?e por
isso quis mudar de volta para cá há dez anos. Meus amigos eram os
vizinhos. Sabíamos que não podíamos ir a alguns cinemas, nem a todos
os restaurantes, e não podíamos nos hospedar em muitos hoteis.

Sabíamos disso, não achávamos certo, mas era a norma. Só que o que
aconteceu naqueles dias na escola nunca tinha me acontecido antes.
Havia brancos aqui no bairro, mas eram de classe baixa ?os negros eram
de classe média, média alta, por causa da universidade? e eram eles
que iam a Harding.

Um ano antes do evento que marcou os 50 anos daquele episódio, em
2007, eu conheci um dos meninos na foto. O avô dele era policial, ele
me contou como foi criado.

Eram dois mundos diferentes. Ficamos amigos, Woody Cooper. Algumas
pessoas se aproximaram de mim na época do evento, mas Woody foi quem
continuou meu amigo.

Eu lhe dizia que crescemos em culturas distintas, e que era o momento
certo de fazermos [os negros] o que fizemos, mas eles [os brancos] não
estavam preparados. Era cedo, era um teste em Charlotte. Fazia só três
anos que a Justiça federal tinha declarado a segregação nas escolas
inconstitucional.

Depois daquilo, a integração foi adiada por três anos. Foi um vexame
na cidade, a foto [do primeiro dia de aula] rodou o mundo. Mas isso
despertou um debate sobre como melhorar as coisas aqui. E as coisas
melhoraram. Meus filhos estudaram em escolas públicas aqui, e era
muito melhor porque havia o transporte escolar para alunos de outras
comunidades, para que as escolas não fossem homogêneas.

Quando isso acabou, muitas escolas passaram a ser frequentadas só por
crianças negras e latinas, por conta do lugar onde vivem. Elas recebem
menos recursos, um tratamento de segunda classe.

FORMAÇÃO

Eu me formei em psicologia. Quando terminei a faculdade, sabia que
queria fazer algo para ajudar famílias. Trabalhei como assistente
social por um ano em Nova York, depois fui para uma pré-escola, e foi
assim que passei a trabalhar com educação infantil e voltei para
Charlotte.

Depois [do incidente], passei um ano na Filadélfia com meus tios, para
frequentar a escola lá. Meus pais achavam importante eu ir a uma
escola integrada para não ficar com a impressão que todo mundo era
como em Harding.

Depois desse ano, meus pais me puseram em um colégio interno em
Ashville, no oeste da Carolina do Norte. Era uma escola da Igreja
Metodista para meninas, onde as alunas eram negras mas os professores
eram mistos.

Quando resolvi estudar na Johnson C. Smith, aqui, meus pais se
surpreenderam. Mas eu estava longe de casa havia três anos, e nós
éramos uma família unida. Queria estar aqui.

Depois de me formar, em 1964, fui para Nova York, onde arrumei um
emprego no departamento social. Meu primeiro trabalho foi em um abrigo
para crianças abandonadas e abusadas.

Depois dei aulas em uma escola infantil, e voltei a Charlotte de novo.

Minha experiência em Harding moldou minha vida. Aos 15, decidi que o
que fosse que fizesse, seria para garantir que nenhuma outra criança
passasse pelo que eu passei. E as coisas que fiz nos meus mais de 50
anos trabalhando foram nesse sentido. Fui professora infantil, dirigi
programas de educação e trabalhei com uma organização sem fins
lucrativos, da qual me aposentei em julho. Foquei em mostrar aos pais
como é importante educar as crianças desde o nascimento, mesmo antes
da escola. Sinto falta dos meus colegas, dos jovens, mas continuo
ativa. Sou próxima da universidade e quero fazer trabalho voluntário
lá, e em outro programa para crianças em Charlotte.

Luciana Coelho/Folhapress
[image: Dorothy Counts, 70, educadora infantil, relembra a experiência
da tentativa de integração racial nas escolas]
Dorothy Counts, 70, educadora infantil, relembra a experiência da
tentativa de integração racial nas escolas

BARACK OBAMA

Você não tem ideia de como me senti quando o presidente [Barack] Obama
foi eleito. Fiquei tão empolgada! Naquele ano, assisti a todos os
debates, li e ouvi tudo que foi dito. E na noite da eleição, decidi
que queria ficar sozinha em casa, não ir a nenhuma festa, e esperar os
resultados. Fossem quais fossem, queria estar sozinha ao ouvir.

Há 55 anos, não passava pela minha cabeça que eu viveria para ver
isso. Não que eu achasse que não pudéssemos, mas é que ele [Obama] é
fenomenal, posso ouvi-lo sem parar e vejo nele a mesma paixão e
preocupação com as pessoas que eu tenho.

Quando ele ganhou a eleição, pensei que tínhamos de apoiá-lo, porque
ele herdou uma bagunça. Eu já dizia que esperava que ninguém achasse
que ele ia consertar de uma vez, em quatro anos, o que levou oito para
fazer. Espero que as pessoas entendam.

Se acho que esperam mais dele por ele ser o primeiro presidente negro?
Com certeza, e acho que isso é parte do porquê [de haver gente
frustrada]. Mas é interessante, eu sei que sou negra, e sei que ele é
negro, e claro que isso me empolga, porque vi a mudança avançar em
vários níveis. Mas também acho que ele era o mais qualificado dos dois
candidatos que concorreram em 2008. Agora acho a mesma coisa.

PERDÃO

[Quanto ao perdão,] só Woody se desculpou comigo.

Saiu uma reportagem a meu respeito no jornal local, e na mesma semana
ele tivera uma aula na igreja sobre perdão. Recebi um email do
repórter dizendo que tinha uma pessoa tentando entrar em contato
comigo, se ele podia dar meu email. Disse ok, e ele [Woody] me
escreveu.

Ele pediu perdão, me contou quem era, me disse que se sentia mal e que
gostaria de ter intervindo naquele primeiro dia, e não o fez.

Eu levei dias para responder, porque ele foi o primeiro a me pedir
perdão. Respondi e continuamos a nos corresponder por seis meses.

Um dia, ele me convidou para ir jantar com ele, a mulher e um rapaz.
Nós nos encontramos em um restaurante na cidade onde, naquela época,
ele poderia comer e eu, não. Foi lá que jantamos.

Continuamos a nos falar, desenvolvemos uma bela amizade. Ele morreu de
câncer no ano passado. A mulher dele me considerava parte da família,
assim como ele.

Duas pessoas se desculparam quando passou um documentário sobre a
escola, mas não mantivemos contato. Woody foi o único que pediu perdão
e de fato sentia. Fomos amigos por quatro anos, e podemos dizer como o
perdão é importante.

Na escola, houve só uma menina [que falou comigo]. Ela era nova lá, e
se aproximou de mim no segundo dia, que foi o melhor dia. Voltei para
casa e disse aos meus pais que ao menos tinha uma amiga. Mas no dia
seguinte ela me ignorou. Há uns 30, ela mandou uma carta para uma TV
local que fez um programa comigo, para me reencaminharem, pedindo que
eu entendesse o que aconteceu. Eu já sabia. Ao se aproximar de mim,
ela e a família receberam ameaças, e os pais a mandaram se afastar.

NETOS E FILHOS

Meus cinco netos sabem da minha história. Meu neto mais novo, que
nasceu na Tailândia [o filho é diplomata e é casado com uma francesa],
viu a foto no jornal e me perguntou porque fizeram aquilo. Ele tinha
cinco anos na época, queria saber por que as pessoas foram ?malvadas?.
Hoje, aos nove, ele entende.

Acho que a identidade negra nos EUA está mais evidente hoje do que há
20 ou 30 anos, porque as pessoas temiam que ela se apagasse. Depois da
integração, havia alguns negros que achavam que para serem
bem-sucedidos não podiam se associar a essa identidade, achavam que
tinham de emular os brancos que viam à volta. De uns 30, 20 anos para
cá, porém, isso começou a voltar com mais força.

Meus dois filhos são adotados, e ambos são mestiços. É uma coisa que
eles tentaram entender desde pequenos, e tentaram buscar com quem se
identificar.

Meu irmão pesquisou nossas origens. A minha família é muito misturada.
Mesmo assim, sei quem eu sou. Sou negra. Sou uma mulher negra. Sou uma
mulher negra e orgulhosa

Fonte: Áfricas

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