ORALIDADE
Projeto construindo e contando histórias infantis
Personagens negras protagonizando histórias
Regina de Fátima de Jesus
Segundo o Plano Nacional de Implementação das DCN para Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-brasileiras e Africana, uma das principais ações a serem desenvolvidas nas instituições de Ensino Superior é:
Desenvolver nos estudantes de seus cursos de licenciatura e formação de professores as habilidades e atitudes que os permitam contribuir para a educação das relações étnico-raciais com destaque para a capacitação dos mesmos na produção e análise crítica do livro, materiais didáticos e
paradidáticos que estejam em consonância com as Diretrizes Curriculares para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras e Africanas e com a temática da Lei no 11.645/08. (2009, p. 39)
Neste sentido, dando continuidade a uma prática pedagógica de caráter antirracista, no primeiro semestre de 2010, na disciplina Estágio Supervisionado I do Curso de Pedagogia, foi proposto um trabalho com livros de Literatura Infantil protagonizados por personagens negras e livros
que remetiam à cosmovisão africana, envolvendo temáticas voltadas à cultura, à religiosidade, aos valores presentes na tradição oral africana. Ao trazer ao diálogo “a/s infâncias, ou os diferentes modos de ser criança”(TAVARES, 2008), nossas palavras foram entrelaçando os conceitos de
infância, tendo por referência as crianças gonçalenses e as histórias e trajetórias escolares dos/as aluno/as presentes no curso, em sua maioria, de São Gonçalo. Neste sentido, o pertencimento local foi revelando o pertencimento étnico-racial do município e da maioria dos/as alunos/as
presentes em sala de aula.
O convite para que elaborassem um projeto para o estágio foi mobilizado
pelas imagens dos livros de Literatura Infantil e pela riqueza das histórias
e teve por objetivo oferecer referenciais de identificação positivos às
crianças negras, que não se veem representadas nos livros de Literatura
Infantil, em geral protagonizados por personagens brancas, cuja estética
é valorizada e tida como referencial de identificação.
A experiência compartilhada durante a disciplina de Estágio Supervisionado
I1 com crianças da Educação Infantil teve como locus a Escola Municipal
Professora Zulmira Mathias Netto Ribeiro, localizada no bairro Paraíso, em
São Gonçalo, frequentada por crianças pertencentes às classes populares,
majoritariamente afrodescendentes e residentes no entorno da escola.
Tecendo fios nas oficinas e costurando histórias
afirmativas
O trabalho se desenvolveu a partir de Oficinas de Contação de Histórias
Os livros escolhidos
• Betina, de Nilma Infantis, tendo os seguintes eixos temáticos: Identidade em construção;
Lino Gomes, ilustrado Brincadeiras e preferências e A criança e seu meio – que histórias vê,
por Denise Nascimento, Ed. Mazza; ouve, vive, compartilha.
• A menina que bordava bilhetes,
1a temática – Identidade em construçãode Lenice Gomes,
ilustrado por Ellen Pestili, Ed. Cortez; e o identidade étnico-racial negra, os hábitos e valores das matrizes africanas presentes em nossa cultura, bem como de uma estética que a escola, em
conto africano: geral, ignora e/ou desvaloriza, apontando para atitudes de respeito às diferenças étnico-raciais.
• “Porque o sol e a lua foram morar no céu”, do livro Sikulume e outros contos Betina, o livro escolhido, traz uma história que busca reencontrar valores africanos, de autoria da cosmovisão africana, destacando a transmissão oral de conhecimentos. de Júlio Emílio Braz, ilustrado por Lucia-
na Justiniani, da Ed. Pallas. do projeto foram: Alessandra de Sá Soares, Ana Carolina
Rosa Souza França, Bárbara Maria Mourão, Camila Cristina
Ribeiro Silvestre, Fábio Reis Clete Simor, Francine Alves da Silva,
Michelle Almeida de Carvalho e Thaís Oliveira Paixão.
1 Sob minha coordenação, orientação e acompanhamento das oficinas, os alunos que participaram
E. M. Zulmira
2 O projeto inicial foi apresentado às professoras das turmas de Educação Infantil de Mathias Netto Ribeiro, sendo reelaborado após algumas visitas de observação do cotidiano escolar e
acompanhamento da turma em suas atividades de sala de aula. Após cada etapa da oficina realizava- se uma reunião para avaliação e reorientação do trabalho desenvolvido.
A menina morava com a avó, que, ao trançar seus cabelos, ia contando histórias e revelando uma sabedoria ancestral. Ao chegar à escola, a cada dia, com os cabelos trançados de forma diferente, Betina despertava a curiosidade das colegas e a vontade de terem o mesmo penteado. Com
isso, interessou-se pela arte de trançar cabelos, tornando-se, quando adulta, proprietária de um salão de beleza.
Segundo Nilma Lino Gomes, (2000, p. 44), a prática de trançar os cabelos explicita a existência de um estilo negro de pentear-se e adornar-se, o qual é muito diferente das crianças brancas, mesmo que estas se apresentem enfeitadas. Essas situações ilustram a estreita relação entre o negro, o cabelo e a identidade negra.
Assim, o ato de trançar nos aproxima de valores da tradição oral africana, como nos ensina Amadou Hampâté Bâ:
o ensinamento não é sistemático, mas ligado às circunstâncias da vida. Este modo de proceder pode parecer caótico, mas, em verdade, é prático e muito vivo. A lição dada na ocasião de certo acontecimento ou experiência fica profundamente gravada na memória da criança.
(HAMPTÉ B, 1982, p. 192).
Assim como a avó de Betina trouxe a valorização da memória e da oralidade, oportunizamos a valorização das experiências entrelaçadas e compartilhadas durante o próprio momento da contação, pois muitas meninas negras da Educação Infantil, tendo ou não seus cabelos trançados,
revelavam um brilho no olhar, contando quem trançava seus cabelos: a avó, a mãe, a tia... E o que nos surpreendeu é que os meninos negros também quiseram compartilhar experiências sobre quem trançava cabelos em suas famílias e de que maneira o faziam.
Com estes referenciais de identificação positivos, busca-se promover a autoestima e possibilitar a reconstrução de valores culturais e de identificação do “eu” por parte das crianças da Educação Infantil nas escolas públicas, majoritariamente afrodescendentes.
Após a contação, foi realizada uma atividade na qual cada criança pôde representar-se de maneira livre e lúdica, utilizando-se de diversos materiais para desenho e pintura, bem como para colagem, inclusive fios de lã de diversas cores e nuances, a fim de possibilitar um trabalho de expressão
da identidade.
Não interferimos nas escolhas, e não causou estranhamento o fato de muitas crianças negras optarem por lã de cor amarela, tentando reproduzir o padrão estético valorizado na sociedade brasileira.
Consideramos que este tipo de trabalho precisa ser cotidiano. “Conta de novo!!!”, ouvido em algumas turmas, recorrente nessa faixa etária, nos revelou o prazer de ver, na Literatura Infantil, um espelho no qual as crianças negras se olham e se veem, sem ter suas imagens negadas
e distorcidas, mas representadas e valorizadas.
2a temática – Brincadeiras e preferências
Na segunda temática, buscamos articular o pertencimento étnico- racial com as questões voltadas à realidade sociocultural das crianças gonçalenses. O livro A menina que bordava bilhetes traz a história de uma menina negra, Margarida, que através de bilhetes bordados estimula a memória dos moradores de um vilarejo acerca de brincadeiras, cantigas, parlendas e versos. Por meio de imagens bem coloridas, retratando bordados e pinturas, e pela envolvente musicalidade e poesia, a oralidade
e a memória são valorizadas no decorrer da obra.
Após a contação da história, as crianças foram convidadas a retirar de uma grande sacola um brinquedo de sua preferência. Alguns brinquedos estimulavam o brincar individualmente, outros, em pares ou em grupo.
Durante algum tempo, as crianças escolheram suas brincadeiras, enquanto observávamos suas preferências. Em determinado momento, meninas e meninos se separaram. E, tentando interferir um pouco, convidamos todos a pularem corda, desestabilizando práticas e construções sociais e
culturais do masculino e do feminino, que por vezes, infelizmente, a escola acaba por reforçar, a fim de possibilitar maior interação entre todos.
A proposta apresentada em decorrência da história e do estímulo às brincadeiras foi de registro, por meio do desenho, da brincadeira preferida fora da escola, no ambiente familiar e junto ao grupo social de pertença.
Algumas questões nos chamaram atenção, tanto na contação da história, quanto no processo de criação por parte das crianças. O fato de a estagiária que contou a história numa das turmas ser negra, e ter os cabelos muito parecidos com os da protagonista, foi motivo de comentário e de certo
“encantamento” por parte das meninas. “A Margarida parece com você, tia”, diziam, valorizando tanto a identidade da estagiária quanto da protagonista da história. Desta forma, houve, também, uma valorização do pertencimento étnico-racial da maioria das meninas e dos meninos da turma.
Em nossas reflexões ficamos a pensar que, infelizmente, não é este o modelo que nossas escolas têm, historicamente, oferecido como referencial positivo, mesmo que em nossos cotidianos haja o predomínio de crianças das classes populares, majoritariamente afrodescendentes, e o quanto
seria fundamental que microações afirmativas como estas tomassem força nos cotidianos escolares, visando a uma transformação na realidade de exclusão com a qual ainda convivem as crianças afrodescendentes.
As produções das crianças expressaram seus universos familiares e do grupo social. Um dos meninos desenhou um barco e, ao ser perguntado se era ali que brincava, e com quem, disse: “É do meu tio”. E não comentou mais nada, mas provavelmente ele já ajuda seus familiares na pesca,
trabalho muito frequente no município.
Também observamos que os modelos de família não coincidem com o retratado nos livros didáticos. Compreendo que a noção de família não pode ser pensada pelos referenciais ocidentais pelos quais a escola se pauta e com os quais ainda trabalha. As formas de organização familiar das classes populares podem nos remeter a uma ancestralidade africana, tendo em vista o pertencimento étnico-racial do município de São Gonçalo e as marcas deste pertencimento nos sujeitos cotidianos. Assim, olhar para as crianças potencializando-as e potencializando suas formas de sociabilidade pode ser uma pista para superarmos os desafios no processo ensino-aprendizagem.
3a temática — A criança e seu meio: que histórias vê, ouve, vive, compartilha
Ao trabalharmos com contos africanos, nosso objetivo foi aproximar as crianças de narrativas que consolidam um modelo estético e cultural de nossas raízes africanas, valorizando-as. Escolhemos, do livro: Sikulume e outros contos africanos, o conto “O dia em que o sol e a lua foram morar no céu”, em que há a personificação de elementos da natureza.
3 Tenho trabalhado com a noção de microação afirmativa cotidiana, considerando estas ações de
caráter antirracista, implementadas no microespaço – o cotidiano escolar –, como fundamentais na
transformação da realidade de racismo. São práticas pedagógicas que visam a oferecer referenciais
de identificação às crianças e jovens negros/as no sentido de afirmarem suas identidades étnico-
raciais, reconhecendo-se sujeitos socio-histórico-culturais.
O desenvolvimento do material para o conto foi inspirado no grupo Os Tapetes Contadores de Histórias. Foram criados cinco tapetes representando cenas do conto. Consideramos que o colorido dos tapetes que trazem as personagens despertaram ainda mais o interesse e a curiosidade das crianças. Ao final da contação, elas foram convidadas a “contarem de novo” e a explorarem o material, sentindo com suas mãozinhas as diferentes texturas dos tapetes confeccionados.
Algumas estagiárias destacaram a fala de uma menina que, ao ser questionada se a água e todo o seu povo caberiam na casa do sol e da lua, disse: “No shopping ela caberia, até a do mar”. Algumas reflexões foram feitas sobre a relação das crianças com o local e o pertencimento sociocultural delas. Uma hipótese foi levantada: o fato de o Shopping de São Gonçalo ficar na rodovia, de frente para o mar, e ser considerado “uma grande construção no município”, poderia fazer com que ele comportasse o mar, na visão de uma criança?
A primeira atividade proposta às crianças, após o conto, foi a de criarem seus próprios tapetes. No seu desenvolvimento, percebemos uma grande identificação delas com as personagens e com o seu simbolismo, remetendo à origem, fato muito presente nos contos africanos.
Outra proposta decorrente do conto foi a criação de uma história coletiva. As crianças se sentaram e formaram uma grande roda. Relembrando nossas raízes africanas — que valorizam a sabedoria dos mais velhos, que têm o hábito de narrar suas histórias e de compartilhar ensinamentos com os mais jovens —, elas foram construindo sua própria história, a partir
dos referenciais familiares e da comunidade.
A realidade cotidiana, as experiências compartilhadas, o que é veiculado na mídia, fatos reais e/ou imaginários foram elementos presentes nas narrativas. Em algumas turmas, entremeando as histórias, aparecem príncipes e princesas, a luta do bem contra o mal; em outras, está presente a luta pela sobrevivência, em que o protagonista vai enfrentando desafios, situações de violência, de abandono, até chegar a um lugar seguro: sua casa.
A livre expressão das crianças pôde expressar um pouco de suas palavramundo, consistindo em um importante momento de aprendizagem mútua: somos todos ensinantes-aprendizes (Freire, 1988).
Regina de Fátima de Jesus é professora adjunta do Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj– FFP) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão: Vozes da Educação Memória e Histórias das Escolas de São Gonçalo.
Referncias bibliogrficas
BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras e Africana. SEPPIR/ Subsecretaria de Políticas de Ações Afirmativas. Brasília, Junho/2009.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam.
São Paulo: Autores Associados/Cortez, 1988.
GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? In: Revista Brasileira de Educação.
Rio de Janeiro: Anped/Autores Associados. n. 21, p.40-51, set/out/nov/dez, 2002.
HAMPTÉ B, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (org.). História Geral da África. São Paulo: Ática/ Paris: Unesco, 1982, 1980.
JESUS, Regina Fátima de. Mulher negra alfabetizando – que palavramundo ela ensina o outro a ler e escrever? Tese (Doutorado em Educação). Campinas: FE/UNICAMP, 2004.
JESUS, Regina de F. de; COSTA, Rosilene, V.; Silva, Luciana S. Uma perspectiva intercultural nas práticas pedagógicas de professores gonçalenses — As micro-ações afirmativas. 2010. IV Seminário Vozes da Educação: Formação de professores/as – Narrativas, Políticas e Memórias. São Gonçalo. 2010.
TAVARES, Maria Tereza Goudard. Infâncias em periferias urbanas: textos, contextos e desafios para formação das professoras da infância. In: Alfabetização: reflexões sobre saberes docentes e saberes discentes. GARCIA, Regina Leite (org.). 2008.
São Paulo: Cortez.
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