sábado, 13 de outubro de 2012

HERANÇA AFRICANA


A herança africana
está por toda parte
A pele, o cabelo, o sangue – o corpo todo, enfim – trazem uma informa-
ção, memória que devemos recuperar para compreender como podemos 
nos inserir, e os preconceitos que precisamos combater. Após discutir essas idéias, a partir do texto de Nelson Olokofá Inocêncio, podemos cuidar 
de outras “artes”.
É fantástico saber que há mais de 40 mil anos a Arte Negra já resplandecia, e poder afirmar a existência de reinos africanos suntuosos. É maravilhoso descobrir que “Em toda a cultura nacional/Na arte e até mesmo na 
ciência/O modo africano de viver/Exerceu grande influência”, como muito bem lembram Wilson Moreira e Nei Lopes na música Ao Povo em Forma de Arte.
O modo africano de ser/viver/conhecer/saber perpassa toda a cultura nacional, só que isso é camuflado e muitos de nós não sabemos. Nossa formação escolar dizia que dos africanos/negros aprendemos sobre culinária, 
danças... Hoje podemos dizer que essa influência está na ciência (que até 
pouco tempo era considerada um legado exclusivo dos portugueses), nos 
modos de curar doenças, na engenharia, nos modos de construir, na arquitetura, na estética, na culinária e –  por que não? – na religiosidade, nas 
manifestações culturais e artísticas, na nossa brasilidade. Para valorizar e 
compreender todo esse legado, precisamos mais uma vez acionar nossos 
corpos, nossos sentidos e ver que esse modo africano de aprender envolve 
as pessoas na sua integralidade. Não se aprende só com a cabeça, mas com 
o coração, a cabeça (ori), os olhos, ouvidos, braços e pernas, com o nariz e 
com o corpo todo, que precisa do presente para acionar o passado e construir o presente e o futuro. 
Se aprendemos com o corpo inteiro, podemos dizer que o mundo nos ensina, que a vida nos ensina. Tudo que tem vida, axé, energia vital nos ensina. 
Então, podemos aprender com músicas, contos, fábulas, culinária, orações, 
preces, danças, escritos, corpos... Tudo é ou pode ser fonte de aprendizagem, 
compreensão e pertencimento ao mundo, tudo pode ser fonte de conhecimento, aprendizagem e saber. O conhecimento pode ser encontrado nos livros, na experiência dos outros, no cotidiano, nas ruas, na vida.
É o que nos conta Raul Lody, percorrendo os vários aspectos de nossa vivência diária, toda ela permeada pelos elementos da cultura oriunda da África. As 
formas de expressão e o modo de vida africano estão definitivamente atrelados à nossa maneira de viver, apreciar arte, comer, vestir ou mesmo dançar. 
Leia e se reconheça!
Beleza e identidade
Sobre os patrimônios afro-descendentes
Por Raul Lody
Entre os povos do mundo em seus diferentes momentos históricos, situa-
ções sociais e estágios econômicos, constata-se que o que se entende por 
belo ou beleza diz respeito a motivos, temas e interpretações muito particulares. São maneiras próprias de compreender e de simbolizar o mundo 
próximo, a natureza, os mitos e os deuses, na descoberta de tecnologias e, 
assim, no encontro de soluções estéticas. Por meio de linguagens sensíveis, 
a beleza pode fazer o relato das trajetórias humanas, trazendo memórias e 
construindo dinamicamente o que se chama de identidade.
Se existem inúmeros conceitos de beleza, todos são, contudo, tradutores 
das culturas e dos desejos criativos do homem.
Falar a respeito de beleza e identidade tendo por base a África, um continente diverso, reunindo centenas de culturas e línguas faladas por milhões de 
pessoas que comunicam e transmitem formas especiais de ver o cotidiano, 
o sagrado, o meio ambiente, as etnias, o trabalho, enfim, a vida, é falar a respeito de um dos mais ricos lugares de tradição e de invenção do mundo.
Florestas tropicais, amplos litorais, o deserto do Saara, entre muitos outros 
ecossistemas, fazem os cenários das primeiras ocupações territoriais humanas, pois o continente africano reúne os mais antigos testemunhos de 
tecnologias e de arte do homem sobre a terra. Por isso, afirma-se: a África 
é a pátria do homem.
A África é lugar que abriga antigas civilizações, como a do Egito, que desde 
antes de 4000 a.C. testemunha conquistas nas ciências e nas artes (arquitetura, pintura, música, dança, literatura, escultura, gastronomia).
PATRIMÔNIO AFRO-DESCENDENTE RICO E DINÂMICO
Nos contrastes e nas peculiaridades de povos e etnias, a África é hoje um 
continente que experimenta guerras internas, grande seca e fome, embora 
seja rica em petróleo, ouro e diamante, entre outras reservas, alvos da cobiça internacional.
São mais de 800 milhões de habitantes que se comunicam por cerca de 400 
idiomas e dialetos.
O contato de africanos com o Brasil dá-se a partir da presença do colono 
oficial português, profundamente africanizado pelas culturas Magreb, de 
povos muçulmanos do Norte do continente. Por mais de oito séculos, a Península Ibérica (Portugal e Espanha) foi dominada e também civilizada 
por sofisticados sistemas culturais e sociais dos afro-muçulmanos, orientando estéticas do morar (com valorização de jardins e de áreas verdes) e 
do vestir, além das muitas descobertas nas ciências, na navegação, na astronomia, nas tecnologias de trabalhar a pedra, a madeira, os metais, especialmente na ourivesaria, com a filigrana, entre outras formas de marcar e testemunhar o califado do Marrocos na Europa.
Com a escravização de povos da África a partir do século XVI, mais de 
4 milhões de pessoas, por um período de 350 anos, foram trazidas para 
o Brasil. Inicialmente, grandes contingentes da África Austral, especialmente do antigo reinado do Congo e de Angola, com os povos bantus; depois, da Costa Ocidental, do Golfo do Benin; e ainda aqueles que chegaram da Costa Oriental, especialmente de Moçambique.
O Brasil, pode-se dizer, é um país biafricanizado. Inicialmente com a chegada do homem português, e, em seguida, com os contatos diretos com regiões do continente africano. Essa chegada ao Brasil dá-se para os trabalhos 
com a cana-de-açúcar, depois para extração de ouro, cultura do café, para 
serviços nas cidades e nos campos. Muitas culturas africanas se relacionaram e assim estabeleceram processos interafricanos de trocas, gerando esse 
rico e dinâmico patrimônio afro-descendente.
EM CADA DETALHE, MUITOS SIGNIFICADOS  
Há um forte sentimento de integração e de fruição entre música, dança, comida, cores, texturas, objetos, palavras, gestos, religiosidade e outras formas de 
expressar e de realizar falas simbólicas a respeito das pessoas e sua história.
As realizações estéticas estão no corpo, no objeto, na dança, na história 
contada oralmente, no vestir, nos sons cantados ou executados em instrumentos musicais, nas casas, nos templos e nas demais expressões que unem 
o homem a seus repertórios simbólicos.
Assim, constroem-se estéticas que não são apenas exercícios de cópias ou 
de repetições isoladas da vida e dos costumes.
Por exemplo, o penteado feminino repete-se na escultura, que continua na 
máscara, ocorrendo o que se chama de arte enquanto forma permanente de 
comunicação entre os homens, e entre os homens e sua ancestralidade, entendendo o mundo, convivendo e interagindo na contemporaneidade.
As identidades sonoras afro-descendentes revelam memórias, trazem muitas estéticas musicais dos sistemas etnoculturais dos povos africanos no 
Brasil. Assim, são preservados estilos, repertórios, instrumentos musicais, 
estéticas de tocar e estéticas de cantar, ampliando percepções que vão muito além dos sistemas tonais de culturas do Ocidente, ganhando uso e representações de sonoridades integradas a outras linguagens que expressam 
afro-descendência.
A maioria dos instrumentos musicais é de percussão: ingome, atabaque, 
adufe, afoxé, tamborim, agogô, gonguê, faia (zabumba), casaca (reco-reco 
antropomorfo), adjá, ganzá, xaque-xaque (chocalho de flandres). Há também os de corda, como a rabeca e o berimbau, entre muitos outros.  
Os sons integram momentos do dia-a-dia, têm grande revelação no tempo 
da festa, são fontes de contato religioso, assumem os espaços das danças, 
do teatro, das brincadeiras, sendo essencialmente lúdicos e comunicadores, 
assumindo funções de sociabilidade e exercícios de pertencimento.
Adufe
Instrumento de percussão, 
também chamado adufo. 
De origem moura, é espécie 
de pandeiro quadrado, sem 
os discos de metal, oco e de 
madeira leve, que se toca com 
os dedos, sustentado pelos 
polegares. Aparece em foliade-reis, folia-do-divino, cururu 
(rural e urbano), fandango, 
xiba, congadas, moçambique, 
samba rural, dança-de-santacruz e algumas danças-desão-gonçalo. Fonte: http:
//cf.uol.com.br/encmusical/
Agogô
Formado por dois cones de 
metal, um agudo e outro 
grave, ambos presos por uma 
mesma haste. É tocado com um 
bastão. Também encontrado 
nas manifestações religiosas 
afro-brasileiras. Fonte: 
www.acordacultura.org.br
Atabaque
Nome mais conhecido do 
tambor de origem africana. 
No Brasil, é tocado no 
candomblé, no afoxé, no 
partido alto, no jongo e nos 
sambas em geral. Fonte: 
www.acordacultura.org.br
Ganzá
Cilindro de metal ou 
bambu com pedrinhas 
no interior. Fonte: 
www.acordacultura.org.br
Gonguê
Espécie de agogô. Instrumento 
usado em danças como 
zambê e bambelô. Fonte: 
Nos adornos corporais, destaca-se a joalheria étnica, que é continuidade 
de memórias e retoma a valorização de materiais, cores, tecnologias, formas, usos e funções de objetos para representar diferentes momentos das 
pessoas em suas trajetórias sociais e culturais. O portar símbolos que identifiquem seus papéis sociais faz os indivíduos serem reconhecidos e integrados a seus grupos.
A própria escolha de búzios, palha-da-costa, tecidos confeccionados em teares artesanais, couro, contas e metais presentes em colares, brincos, pulseiras, 
nos trajes, nos calçados e bolsas e compondo também penteados já representa 
em si uma opção estética para adornar ou representar o corpo.
COMIDA REVELA CULTURA E TRADIÇÕES 
Matrizes africanas, memórias remotas, memórias construídas sobre base 
africana no Brasil buscam ocupar lugares na sociedade complexa e multicultural, pois o assumir a beleza é também assumir lugares de pertencimento, de resistência e conquista da cidadania.  
Sem dúvida, está na comida um dos mais significativos elos entre a pessoa 
e sua cultura, entre a pessoa e sua identidade.
Os ingredientes, as receitas, as maneiras de preparar, servir e comer indicam formas e estilos de traduzir povos, civilizações, sobretudo quando se 
trata da forte presença africana na mesa brasileira.
Azeite-de-dendê, pimentas várias – como, por exemplo, a pimenta-da-costa – e o quiabo são suficientes para ilustrar os muitos sabores que fazem 
nossos gostos, nossas escolhas, formando nossos paladares de brasileiros, 
uma verdadeira estética da alimentação. 
Quiabo com frango, caruru, quiabada, refogados, amalá, saladas ou interpretações nordestinas da feijoada são algumas das muitas receitas de quiabo no Brasil, trazendo à boca a África e suas leituras afro-descendentes.
Berimbau
Instrumento musical de 
tradição africana constituído 
por um arco de madeira, preso 
por um fio de arame esticado. 
Em uma de suas extremidades, 
é colocada uma cabaça aberta, 
fixada ao arame e à madeira 
por um barbante. Para tocar, 
usam-se um dobrão ou uma 
pedra chata, na mão esquerda, 
e uma vareta de bambu, 
mais um caxixi pequeno, 
na mão direita. Fonte: 
www.acordacultura.org.br
Ingome
Também chamado angoma 
ou engono. Grande tambor de 
uma só membrana, usado nos 
candomblés bantos (angolas 
e congos) e também em certas 
danças como cocos e jongos. 
Fonte: http://cf.uol.com.br/
encmusical/ 
Tamborim
Pequeno tambor agudo, 
próprio do samba carioca, 
tocado com uma baqueta. 
É também utilizado em 
outros ritmos. Fonte: 
www.acordacultura.org.br
Azeite-de-dendê
 ÓIeo extraído da noz do 
dendezeiro, de larga aplicação 
na culinária e nos cultos 
afro-brasileiros. Na religião 
dos orixás, é substância 
fortemente portadora de 
axé. No simbolismo iorubá, 
representa o poder dinâmico 
dos descendentes de Oduduá.  
Fonte: Enciclopédia Brasileira 
da Diáspora Africana, Nei Lopes
Os pratos assumem estéticas próprias nas maneiras de servir, nos acompanhamentos de arroz, de pirões e farofas de farinha-de-mandioca, molhos 
de pimenta, entre outros. Há escolhas de utensílios, objetos de barro, de 
madeira, de louça, para cada receita que tenha no quiabo o principal ingrediente, como o amalá.
Na alimentação, há um encontro inicial com a imagem, a forma como formalmente é oferecido o alimento. Sabe-se que se come primeiro com os olhos, 
depois se come com a boca e todo o corpo, para então atingir o espírito.
Os elementos da comida (cor, textura, odor, temperatura e objetos complementares), bem como quantidades e maneiras de ingerir, trazem e ativam conhecimentos, reforçando memórias, pois o homem tem fome de símbolos.
Fora do continente africano, o Brasil é o país que reúne o maior número 
de afro-descendentes. Essa forte presença é fundamental na formação do 
povo brasileiro.
UM JEITO NOVO DE OLHAR O MUNDO
A liberdade de criar, de trazer novas referências visuais, sonoras, espaciais 
dá um sentido e um sentimento de que é possível vivenciar novos caminhos estéticos, além daqueles orientados pelo olhar europeu, ocidental, judaico-cristão. A África é um rico lugar de experiências estéticas que transitam desde as pinturas mais antigas, rupestres, primeiros testemunhos das 
expressões artísticas, até o mundo contemporâneo que recicla materiais, 
objetos, reinventando, atualizando formas, utensílios e usos, preservando, 
ao mesmo tempo, identidades, memórias coletivas e fundantes e ainda memórias pessoais, funcionais para o cotidiano e tudo que possa revelar pertencimento, inclusão e experiência cultural.
Os conceitos de beleza e de estética estão profundamente relacionados aos 
conceitos de pertencimento. Portar, usar, exibir, apropriar-se do belo é viver e transmitir esse belo.
Quiabo
Hibiscus esculentos L., 
Originário da África, é também 
conhecido por quingomba e 
gombo em Angola, e gongo em 
outras regiões do continente.
Amalá
Comida sagrada do orixá 
Xangô. Feita de quiabos em 
rodelas e alguns inteiros, 
refogados no azeite-dedendê, com cebolas,camarões 
defumados e pimentas, 
sobre pirão de inhame e 
complementado com acaçás – 
bolos de milho branco cozidos 
em folhas de bananeira –, tudo 
colocado em gamela redonda 
de madeira, assumindo estética 
própria das comidas dos 
candomblés.
Fonte: Enciclopédia Brasileira 
da Diáspora Africana, Nei Lopes
A escolha de cores, de materiais, de objetos constitui-se em textos visuais, 
sonoros e plásticos que têm significados e sentidos para uma sociedade, 
uma etnia, um grupo cultural, assumindo identidades, tocando os territó-
rios das diferenças. Justamente nessas diferenças é que são distinguidos os 
mais importantes sinais da pessoa e de sua história.
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